sábado, 21 de maio de 2011

Repensando a crise do direito a partir da problemática althusseriana da ideologia


1. O direito há de se achar na sociedade, passando por aí a necessidade de o “jurídico” encontrar o “social” não com a aspereza de quem se bate de frente com um vizinho estranho num esporádico e indesejado momento, mas como uma espécie de síndico que está ali, periodicamente, para, goste-se ou não, cobrar, em nome da coletividade, a cota de solidariedade condominial com o projeto constitucional desenhado pela Carta da República de 1988.

2. Ainda que o direito deva ser cada vez mais contaminado para realidade, fundamental que não se tenha a ingenuidade de imaginar que este processo se dá de modo puro e direto, como uma simplista apropriação de conteúdo. Ao contrário, esta complexa relação está mediada por instituições que, não raras vezes, veiculam e promovem a influência de suas falsas, dominantes e hegemônicas posições a partir de determinada instância ideológica.

3. A preocupação com a temática da ideologia (“Ensaios sobre os aparelhos ideológicos do Estado”), um dos temas centrais no pensamento de LOUIS ALTHUSSER (1918-1990), pode trazer bons caminhos e resultados na discussão crítico-reflexiva alusiva à crise da “superestrutura” do direito na atualidade.

4. Assim, tomando por base a matriz de pensamento marxista de leitura heterodoxa e marginal althusseriana, dada a notória incapacidade de o direito cumprir com muitos dos seus papéis, especialmente para aqueles que mais precisam dele (presos, sujeitos abaixos da linha mínima existencial de cidadania, etc), é de se problematizar, hoje, qual o aparelho ideológico que mais influência exerce sobre o fenômeno da ciência jurídica, especialmente na sua interpretação e aplicação, momento crucial para verificar como se dá o encontro da vigência e efetividade entre direito e sociedade.

5. Ainda que a história do direito e a Itália de modo especial (ex: Vaticano) mostrem a sobrevivência de parcela do direito atrelada a uma concepção religiosa de mundo, tratando-se de Estados formalmente laicos, como o brasileiro, apesar de ainda existirem temas-tabu (ex: aborto) à espera de enfrentamento competente, sem dúvida que paulatinamente está sendo substancialmente reduzida a influência da dogmática religiosa na reprodução do direito. A título ilustrativo, importante lembrar que decisão recente (e justa) do STF reconheceu a possibilidade de união estável homoafetiva, mostrando que, pelo menos no tocante ao exame desta específica relação existencial, o princípio do afeto e o sentido da família e do companheirismo como cumprimento de uma função vão muito além dos limites literais da lei, que, obviamente, está muito longe de alcançar toda a realidade.

6. De outro lado, é de se indagar se não foi a estrutura do “aparato ideológico” econômico (lobbies) que mais exerceu influência na ADI 3273, tendo como temática a discussão da monopólio-exploração do petróleo (assunto que continuamos tratando com a lógica de colônia, por mais que a indústria naval tenha sido retomada e, pelo menos em relação ao pré-sal, tenhamos, agora, um marco regulatório um pouco menos predatório). O que dizer então da incapacidade de o direito (leia-se especialmente Poder Judiciário, de modo geral) dar um atendimento adequado à tutela difusa do meio ambiente? Alguma dúvida de que aqui a “análise econômica do direito” aqui mostra suas unhas? (ou seriam garras?)

7. Em se tratando do direito penal, então, não parece existir dúvida de que o aparato ideológico dos meios de comunicação de massa ainda dita e mistura a desejável interpretação técnica jurídico-penal com argumentos de terror em prol de maior segurança pública, não raras vezes fazendo preponderar o segundo aspecto, especialmente pela lamentável confusão que se faz entre o papel de defender a Constituição e o de se achar, ilusória e equivocadamente (ainda que com maior carga de felicidade) que política pública de Estado de segurança pode ser resolvida a partir de escolhas e decisões pautadas no movimento ideológico da “lei e ordem” dentro de cada específico processo, o que não deixa de ser o tremendo de um engano;

8. Assim, pensar nos obstáculos que impedem a efetivação de novas “gramáticas de direitos” propicia reflexão sobre a difícil tarefa de identificar quais são as instâncias e os aparatos ideológicos que maior influência e produção exercem sobre a aplicação interpretação do direito na atualidade.

9. Longe de se encontrar solução para um problema essencialmente complexo, talvez a maior carga de culpa para explicação do aparente insucesso do direito em cumprir com a sua função de viabilizar a transformação da realidade social exigida pelo Estado Democrático de Direito esteja no viciado e mofado aparelho ideológico de ensino jurídico, incapaz de permitir produção de saber crítico na mesma e direta proporção que é muito eficiente para “reproduzir” o modo de produção do senso comum teórico, desde há muito denunciado pelo saudoso Mestre WARAT.

10. Mais do que buscar na psicanálise e no inconsciente, duas temáticas particularmente especiais na lógica althusseriana, há de se pensar, de modo permanente, quais são as novas formas emancipatórias de produção de ensino jurídico a partir de novos valores, notadamente da contribuição empírica, pois somente assim estar-se-á superando uma das barreiras impeditivas à construção permanente e dialógica de um saber realmente transformador capaz de estabelecer “ponte” permanente entre direito e sociedade.

11. Mais do que a biografia polêmica de ALTHUSSER, na qual ocupa destaque o misterioso episódio da morte (homicídio?) de sua esposa Helene, também há que se discutir o “caso clínico” das ciências jurídicas e sociais na atualidade, a vida e morte das “fontes tradicionais” da doutrina e da jurisprudência como seus dois maridos (e a lição aqui também é de WARAT). O direito, mais do que julgado no banco dos réus (e que bom se aqui o Tribunal fosse um pouco mais popular), precisa ser tratado sob foco hipercrítico, pois somente assim poderá romper com o surto psicótico-alienante da limitada matriz do positivismo jurídico. Alguns já se deram conta, porém ainda são poucos, muito poucos, quase na mesma proporção dos que acessam o pensamento labiríntico de ALTHUSSER.

12. A discussão das possibilidades, impasses, tragédias, desafios e limites do direito (da pesquisa em direito, do ensino em direito, da interpretação em direito), do seus dramas e destino como objeto que esta aí para cuidar de regular as relações entre sujeitos, passa pelo dia de hoje, aqui e agora, pois, como bem refletiu ALTHUSSER numa de suas obras, sim, “o futuro dura muito tempo”.

13. Ou se batalha pelo direito livre e vivo capaz de veicular uma “nova cientificidade” (não necessariamente aquela buscada por ALTHUSSER na obra de MARX) ou, daqui a pouco tempo, quando a lucidez cobrar seu preço, todos aqueles que de alguma maneira estão vinculados ao pensamento jurídico terão, como ALTHUSSER, de arcar com a angústia e o remorso do, “como é possível”, “como é possível que”, “como é possível que eu”, “como é possível que eu tenha....”.