domingo, 25 de março de 2012

Notas sobre Direito & Música



“A tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem” Theodor Adorno

O Direito é um produto cultural, enunciação praticamente livre de maior controvérsia ou dissenso.

O papel da cultura em tempos pós-modernos, sabemos, está muito longe de ser uma possibilidade de emancipação, pairando a dominação pelo discurso do capital, do consumo e da alienação. O ponto toca a desagregadora “indústria cultural” já referida por Adorno, a necessidade de discutirmos uma nova ideia de cultura, como, por exemplo, propõe Terry Eagleton.

Ocorre que este hermético e muitas vezes incompreendido e hermético universo do direito, ao pretender lidar e disciplinar com os maiores bens da vida e dos seres humanos, também depende de amor e sensibilidade na criação e aplicação de suas normas jurídicas (e sociais, não esqueçamos). Esta uma das tantas inesquecíveis lições de Warat e de outros tantos juristas preocupados com um ensino e uma transmissão responsável do Direito, do seu reconhecimento identitário como instrumento de transformação da perversa realidade social, ainda distante muita poeira e léguas dos pretensiosos objetivos da República (artigo 3o, Constituição)

De outro lado, a música é uma expressão da arte com suas métricas, intervalos, acordes e tons, enfim, com sua epistemologia própria, campo da criatividade que, da mesma forma que preza a disciplina do ensaio, sabe o valor (e o sabor) do tempero de uma improvisação (como no jazz).

Não é preciso muita reflexão para perceber que o direito de hoje (em crise desde há muito, como quase todas as instituições da transmodernidade) precisa desesperadamente da arte e de todas as expressões culturais como remédios vitais capazes de lhe emprestar um novo, autêntico e criativo sentido.

O Direito, para além dos mecanismos tradicionais de sua circulação, também depende da música como instrumento de estímulo à sua vocalização e compreensão mais democrática e popular.

O Direito "achado na rua", defendido por Boaventura de Sousa Santos, com música, pode ficar mais fácil de ser localizado e aproveitado.

Definitivamente já passou da hora de se pensar na música como canal para ensino, debate crítico e verdadeira popularização do direito, aspecto último que integra a elogiável pretensão do “Estado de Direito”, importante veículo que, organizado pela engajada Carmela Grune, possui e divulga importante e original projeto contrahegemônico chamado “Direito no Pé e Samba na Cabeça”(basta acessar youtube e conferir). Já que o direito é cultura, e cultura é samba, nada melhor do que um produto da expressão popular para fazer o juridiquês entrar no ritmo da rua, da favela, da batucada. Uma roda de samba pode ser o começo de e nova sonoridade e alteridade jurídica. Por que não?

Se Direito positivamente precisa predominar “kantianamente” como elemento de razão, basta acrescentar uma pitada de música para que seus tecido ganhe um pouco mais de textura, cor, ritmo, contraste e sensibilidade. Ou o Direito faz questão de não se fazer ouvir?

Não por acaso alguns diferenciados artigos ou mesmo textos jurídicos abrem com alguma citação ou transcrição musical. Perceba-se que a música comporta “fala” com transcendência, mutabilidade e circularidade foucaultiana, “caixa de ferramentas” reveladora daquilo que não propriamente não se revela pela letra fria e disciplinada da escritura.

Lembro aqui do sempre genial Alexandre Morais da Rosa citando Nei Lisboa no clássico e imperdível Decisão penal: bricolage de significantes e significados: “não ando do lado da lei, a lei não foi ideia minha…". E poderia continuar: lamento que o mundo não gire, na velocidade que eu queria.

Tal como a literatura traz a narrativa e a vida para iluminar e encorpar o Direito (e o excelente programa Direito e Literatura da TV Justiça comandando pelo singular Lênio Streck é a prova cabal do poder deste casamento), a música, tal qual outro estado das artes (teatro, cinema, dança) também pode ser um decisivo instrumento, um verdadeiro "pé de cabra" para forçar o Direito a sair do seu labiríntico e inacessível Castelo kafkiano para aproximar-se à rotina das pessoas que dele dependem, cotidiano do qual cada um extrai sua filosofia, como bem ensina Agnes Heller;

A música, portanto, pode ser veículo de crítica, transporte e aproximação do Direito com a realidade, pois mais do que nunca há de se querer um direito vivo, pulsante e verdadeiramente plural (Wolkmer).

Afinal, nessa proposta de união entre direito e música, se queremos um direito realmente latino-americano e descolonial, de "libertação" (Dussel), como acertadamente é a proposta de muitos, que façamos opção por um estilo propriamente cultural e afeto à nossa realidade tupiniquim, não havendo melhor e mais genuíno retrato comunitário dessa expressão do que, por exemplo, o samba, que se fizer a sala de aula formar uma "roda", por exemplo, já estará contribuindo para renovar o desgastado formato do ensino jurídico.

Lembro do grande e saudoso Mestre Warat dizendo que para os lidadores do direito bom seria exigir alguma demonstração explícita artística (mais de vontade do que de talento) como prova de proficiência para demonstrar cota mínima e necessária de sensibilidade exigível no trato rotineiro de valores e vidas humanas. Segundo ele, dançar (ou interpretar) uma música, recitar um poema, tocar um instrumento, apreciar elementos críticos no cinema, alguma dessas empreitadas obrigatoriamente teriam que ser experimentadas e praticadas pelo jurista, sob pena de se ter este como desabilitado para seguir adiante no seu ofício...

A música pode trazer novas práticas de inclusão ao velho mundo do direito, o qual por não poucas vezes teima se constituir em espaço de exclusão pela palavra. Por isso também passa a oxigenação e depuração democrática da linguagem elitista (burlesca e burguesa) do direito. Diz-se isso porque falar sobre música também é tocar no baú da linguagem como instrumento de instrumentalização (e compreensão) do proprio Direito.

Como bem lembrou recentemente o arejado Professor Vladimir Passos de Freitas, “Direito e música é tema rico e pouco explorado”. Como ele bem registra, quem lembra das músicas brasileiras que balançaram os porões da Ditadura? Como desconhecer o valor de “Saudosa Maloca” do Adoniran Barbosa para discutir posse, propriedade e o prório direito fundamental à moradia? Como ignorar a sabedoria de um Bezerra da Silva para retratar cenas do cotidiano policial e a seletiva criminalidade de periferia? Que dizer então das sábias reflexões e baladas de um ícone como Raul Seixas?

Existem outros inúmeros bons exemplos. Entre outras iniciativas, merece destaque um projeto desenvolvido em parceria pelos cursos de Música e Direito da Universidade Federal do Sergipe, envolvendo trabalho dos Professores Christian Alessandro Lisboa e Carla Eugenia Caldas Barros (ver http://direitonamusicaufs.blogspot.com.br/). De outro lado, no Rio Grande do Sul, os Professores Salo de Carvalho, Felipe Moreira de Oliveira e Moysés Pinto Neto já perceberam a potencialidade da música para ilustrar debates jurídico-penais, como pode ser conferido no blog “Criminologia de Garagem” (http://criminologiadegaragem.blogspot.com.br/). Ou alguém tem dúvida de que, inspirado no rock, não fica mais contextualizado lembrar o quanto a dogmática penal (e outros ramos do direito) precisa de irreverência, rebeldia e contestação?

Em linhas finais, não se olvide que a Música, como o Direito, depende da pré-compreensão, travessia que tem na hermenêutica e interpretação aspectos decisivos à obtenção do valor justiça. É nesse caminho aliás que devemos abordar de modo diferenciado a questão dos direitos autorais, campo onde barbáries jurídicas e verdadeiros estados de exceção "agambenianos" (ex: SOPA, PIPA e outros) estão sendo praticados (mas precisa ser tema de outro “post”).

Música, como lei, não se executa mecânica e assepticamente, ao contrário, se interpreta!

Se a vida sem música seria um erro, se a música também está aí no mundo para aliviar o sofrimento do ser, como lembra Nietzsche, e se o direito, de outro lado, precisa pautar-se pelo paradigma filosófico da vida concreta (Celso Ludwig), bem se percebe que combinar direito e música é um arranjo contemporâneo mais do que urgente e necessário.

Aos que não querem o Direito como “ouro de tolo”, como figurativamente ensina Raul Seixas, aos que não desejam ver o Direito “sentado num trono de um apartamento com a boca cheia de dentes [e normas] esperando a morte chegar”, “longe das cercas [jurídicas] embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê” que sabe não há de se assentar “a sombra sonora” de algum “disco voador”.

São as “aguas de março deixando o verão” e talvez trazendo um pouco mais de esperança e “promessa de vida” no coração…do Direito.