As manifestações da população nas ruas (não
necessariamente populares) varrem o Brasil desde o começo de junho de
2013. Enfim, a “primavera brasileira”.
Lá se vão algumas semanas e, com o tempo, quem sabe, a possibilidade de se
fazer algum tipo de balanço, ainda que precário, sujeito a história que, como
bem ensinava Marx, é a melhor ciência que há.
Num misto de precipitação e incompreensão, a
cobertura dada pelos meios de comunicação bem mostram o caráter camaleônico e
manipulador que as “mídias” ostentam em tempo de sociedade global marcada pela
hiperinformação quase sempre desacompanhada da reflexão. Por aí se vê que o
conceito de “censura” é complexo, evidenciando que distorcer informação ou não
dar espaço para algumas versões reais é tão nocivo quanto interditar.
Foi nesse quadro que se assistiu o Estado
Policial agir com conhecido despreparo e absurdo excesso e percebeu-se o quanto
que a “pressão das ruas” pode ajudar para derrubar projetos legislativos
espúrios como a Proposta de Emenda Constitucional 37, que buscava atribuir o
monopólio das investigações à Polícia em detrimento do Ministério Público. Mais
do que isso, a “voz das ruas” também serviu para forçar o Congresso Nacional a
construir uma agenda mais positiva e coerente com as pretensões do povo.
Transporte e mobilidade, saúde, educação, menos
corrupção, essas são apenas algumas das reivindicações explícitas nos cartazes
e nos signos do protesto que desde há muito (e talvez desde sempre) que se
exercia aqui como verdadeiro direito.
O país do samba, do carnaval e do futebol,
sempre tão decantado pelo caráter pacífico (para não dizer alienado) de seu
povo, em plena Copa das Confedera ções organizada por uma das entidades menos
transparentes e fiscalizadas do planeta (FIFA), finalmente conseguiu expressar
indignação com gastos milionários para construção e reformas de estádios
(alguns dos quais cedidos à exploração privada a preços módicos) num contexto
de “negatividades” onde faltam saneamento básico, vagas em creche e leitos dos
sistema único de saúde nos hospitais.
A horizontalidade e o caráter anárquico da
maior parte das reivindicações mostra que, do mesmo modo que esta chegou
incerta, imprevisível decretar quando será o seu fim. A circularidade das
pautas e das lideranças dificultam a cooptação, ainda que as tentativas de
“revolução passiva”, antes alertadas por Gramsci, assumam versões
contemporâneas de reformas e plebiscitos.
Sem embargo de que, como todo movimento da
multidão (quem frequenta estádios de futebol ou qualquer aglomeração coletiva
sabe bem disso), obviamente devamos lamentar alguns excessos que excedem
algumas consequencias naturais e inexoráveis do direito ao protesto, parece-me
evidente que o momento hoje vivenciado é rico para permitir que essa energia ciodadã
canalizada para maior politização e consciência do povo brasileiro quanto a
necessidade de mudanças estruturais no projeto de nação, salientando a
importância que há de ter a
participação popular no controle da administração pública, por exemplo.
Sitiar a residência dos governantes, muitos dos
quais por vezes agem movidos por poder absoluto como se estivessem em ilhas,
ofendendo o senso de razoabilidade e justiça de um povo sofrido que até se
mostrava um tanto quanto
irritantemente pacato para desmandos e irregularidades envolvendo a
gestão dos recursos públicos, não deixa de ser uma providência pedagógica e
simbólica capaz de trazer memória para ensinamento de que, como bem frisa
Dussel na sua filosofia política (20 teses de política e Política da
Libertação), a “potentia”, o poder em si, é sempre do povo.
Além de se questionar o conceito da democracia
representativa, é oportuno que os manifestantes percebam que os espaços para a
construção da democracia participativo-deliberativa são permanentes e, em
alguns formatos, já existem. Ou ignora-se que as conferências (que assim como a
Jornada Mundial da Juventude Católica, também ocorre de dois em dois anos) e os
conselhos sociais gestores de políticas públicas são ferramentas poderosas com
as quais as mãos populares precisam se familiarizar?
Ainda que as reivindicações estejam muito longe
de tocar em reais problemas que a intelectualidade orgânica bem conhece (falta
de auditoria da dívida externa, falta de regulamentação do capital estrangeiro
no “cassino Brasil”, usurpação de uma política eficiente de previdência
pública, problema da precariedade dos serviços públicos decorrentes da
terceirização, dentre outras heranças coloniais malditas), por mais que as
maiores vítimas das farsas políticas que garantem a “governabilidade” muitas
vezes estejam distante das ruas pelo simples fato de estarem em regime quase
escravo de trabalho num sistema capitalista oppressor, o simples fato de estar
sendo manifestado um estado de insatisfação com o atual estado da coisas já é
motivo para alguma celebração.
A rua como espaço de pressão, pensamento e
concepção da política, mesmo com o risco das suas esquinas serem tomadas por
ondas produzidas por ventos vindo da “direita” reacionária ou da “esquerda”
oportunista, tem o potencial de
deixar muito mais ganhos do que perdas para reconstruir a relação do ser humano
com suas cidades. A pauta de problemas a resolver não é pequena. Que seja um
novo amanhecer para os movimentos sociais e para a sociedade civil reencontrar
seu papel crítico de fiscalização do Estado. Que seja um novo momento para as instituições, especialmente
o Ministério Público (fortalecido ao ter sido lembrado e tomado como bandeira
pelo povo brasileiro), aproximarem-se ainda mais da sociedade brasileira, do
Brasil profundo nos seus reais desejos e anseios. O presente e o futuro irão
determinar o quanto soube-se aproveitar deste momento iluminado da democracia
brasileira. Há fermento (e massa) para fazer muito mais.