sábado, 20 de julho de 2013

A "primavera brasileira": primeiras impressões




As manifestações da população nas ruas (não necessariamente populares) varrem o Brasil desde o começo de junho de 2013.  Enfim, a “primavera brasileira”. Lá se vão algumas semanas e, com o tempo, quem sabe, a possibilidade de se fazer algum tipo de balanço, ainda que precário, sujeito a história que, como bem ensinava Marx, é a melhor ciência que há.
Num misto de precipitação e incompreensão, a cobertura dada pelos meios de comunicação bem mostram o caráter camaleônico e manipulador que as “mídias” ostentam em tempo de sociedade global marcada pela hiperinformação quase sempre desacompanhada da reflexão. Por aí se vê que o conceito de “censura” é complexo, evidenciando que distorcer informação ou não dar espaço para algumas versões reais é tão nocivo quanto interditar.  
Foi nesse quadro que se assistiu o Estado Policial agir com conhecido despreparo e absurdo excesso e percebeu-se o quanto que a “pressão das ruas” pode ajudar para derrubar projetos legislativos espúrios como a Proposta de Emenda Constitucional 37, que buscava atribuir o monopólio das investigações à Polícia em detrimento do Ministério Público. Mais do que isso, a “voz das ruas” também serviu para forçar o Congresso Nacional a construir uma agenda mais positiva e coerente com as pretensões do povo.
Transporte e mobilidade, saúde, educação, menos corrupção, essas são apenas algumas das reivindicações explícitas nos cartazes e nos signos do protesto que desde há muito (e talvez desde sempre) que se exercia aqui como verdadeiro direito.
O país do samba, do carnaval e do futebol, sempre tão decantado pelo caráter pacífico (para não dizer alienado) de seu povo, em plena Copa das Confedera ções organizada por uma das entidades menos transparentes e fiscalizadas do planeta (FIFA), finalmente conseguiu expressar indignação com gastos milionários para construção e reformas de estádios (alguns dos quais cedidos à exploração privada a preços módicos) num contexto de “negatividades” onde faltam saneamento básico, vagas em creche e leitos dos sistema único de saúde nos hospitais. 
A horizontalidade e o caráter anárquico da maior parte das reivindicações mostra que, do mesmo modo que esta chegou incerta, imprevisível decretar quando será o seu fim. A circularidade das pautas e das lideranças dificultam a cooptação, ainda que as tentativas de “revolução passiva”, antes alertadas por Gramsci, assumam versões contemporâneas de reformas e plebiscitos.  
Sem embargo de que, como todo movimento da multidão (quem frequenta estádios de futebol ou qualquer aglomeração coletiva sabe bem disso), obviamente devamos lamentar alguns excessos que excedem algumas consequencias naturais e inexoráveis do direito ao protesto, parece-me evidente que o momento hoje vivenciado é rico para permitir que essa energia ciodadã canalizada para maior politização e consciência do povo brasileiro quanto a necessidade de mudanças estruturais no projeto de nação, salientando a importância que  há de ter a participação popular no controle da administração pública, por exemplo.
Sitiar a residência dos governantes, muitos dos quais por vezes agem movidos por poder absoluto como se estivessem em ilhas, ofendendo o senso de razoabilidade e justiça de um povo sofrido que até se mostrava um tanto quanto  irritantemente pacato para desmandos e irregularidades envolvendo a gestão dos recursos públicos, não deixa de ser uma providência pedagógica e simbólica capaz de trazer memória para ensinamento de que, como bem frisa Dussel na sua filosofia política (20 teses de política e Política da Libertação), a “potentia”, o poder em si, é sempre do povo.
Além de se questionar o conceito da democracia representativa, é oportuno que os manifestantes percebam que os espaços para a construção da democracia participativo-deliberativa são permanentes e, em alguns formatos, já existem. Ou ignora-se que as conferências (que assim como a Jornada Mundial da Juventude Católica, também ocorre de dois em dois anos) e os conselhos sociais gestores de políticas públicas são ferramentas poderosas com as quais as mãos populares precisam se familiarizar?
Ainda que as reivindicações estejam muito longe de tocar em reais problemas que a intelectualidade orgânica bem conhece (falta de auditoria da dívida externa, falta de regulamentação do capital estrangeiro no “cassino Brasil”, usurpação de uma política eficiente de previdência pública, problema da precariedade dos serviços públicos decorrentes da terceirização, dentre outras heranças coloniais malditas), por mais que as maiores vítimas das farsas políticas que garantem a “governabilidade” muitas vezes estejam distante das ruas pelo simples fato de estarem em regime quase escravo de trabalho num sistema capitalista oppressor, o simples fato de estar sendo manifestado um estado de insatisfação com o atual estado da coisas já é motivo para alguma celebração.
A rua como espaço de pressão, pensamento e concepção da política, mesmo com o risco das suas esquinas serem tomadas por ondas produzidas por ventos vindo da “direita” reacionária ou da “esquerda” oportunista,  tem o potencial de deixar muito mais ganhos do que perdas para reconstruir a relação do ser humano com suas cidades. A pauta de problemas a resolver não é pequena. Que seja um novo amanhecer para os movimentos sociais e para a sociedade civil reencontrar seu papel crítico de fiscalização do Estado.  Que seja um novo momento para as instituições, especialmente o Ministério Público (fortalecido ao ter sido lembrado e tomado como bandeira pelo povo brasileiro), aproximarem-se ainda mais da sociedade brasileira, do Brasil profundo nos seus reais desejos e anseios. O presente e o futuro irão determinar o quanto soube-se aproveitar deste momento iluminado da democracia brasileira. Há fermento (e massa) para fazer muito mais.