sábado, 12 de setembro de 2009

O que mudou (na crise global e) no Judiciário? A “cegueira” da Meta n. 2 do CNJ: “espetacularização” da vitória do átomo sobre a molécula.



É superação da totalidade, mas não só como atualidade do que está em potência no sistema. É a superação da totalidade desde a transcendentalidade interna ou da exterioridade, o que nunca esteve dentro. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema (não havia potência para isso), é realizar o novo, o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade incondicionada, revolucionária, inovadora.
Enrique Dussel.

1. Em tempos de regime opressivo de economia capitalista global, em período de difícil convivência e (dis) sociação na multiplicidade de expectativas egoísticas estimuladas pelo regime da sociedade neoliberal de consumo (Baudrillard), que tanto contribui para diluição da subjetividade crítica e para a perda de solidariedade, a grande pergunta da atualidade é: o que propriamente mudou com o percurso de um ano da dita “crise mundial”? Mesma reflexão poderia ser feita sobre a passagem dos setenta anos do começo da II Guerra Mundial ou mesmo sobre os oito anos seguintes à queda das Torres Gêmeas. Todavia, outro pode ser um foco de balanço, novo pode ser o debate de um tema que, ao contrário dos primeiros, por não ser costumeiramente veiculado com destaque e responsabilidade pela mídia (só para variar) conseqüentemente acaba escapando à apropriação crítica pela sociedade.

2. Se os conflitos sociais visivelmente deixaram a estrutura do “átomo” para comporem genuínas “moléculas”, migrando cada vez mais do campo individual para os interesses coletivos, tanto é assim que um microssistema processual coletivo foi e continua sendo criado (aqui a falha definitivamente não é do legislador, pelo menos sob o ponto de vista da omissão), fato é que, de modo geral, convivemos com um Poder Judiciário cujos olhos estão literalmente vendados e direcionados para o perfil de litígio do século passado, mais preocupado com a resolução de conflitos individuais (e patrimoniais) do que, propriamente, ocupado de priorizar julgamento de questões que envolvem interesses difusos e coletivos da sociedade permeados de interesse público, aqueles que, pela sua natureza, complexidade e dimensão, propriamente podem cumprir para efetivar o Estado Democrático de Direito e fazer cumprir os tantos direitos que a Constituição da República prometeu, missão efetiva e precípua do Ministério Público como órgão defensor da sociedade.

3. Não por acaso (e a classe política claro que já sabe disso), dizer que o Ministério Público irá propor em nome da sociedade uma determinada ação civil pública frente a determinado demandado-réu (seja ele pessoa física jurídica de direito privado ou, principalmente, pessoa jurídica de direito público da União, Estados e Municípios) muitas vezes não significa mais do que medo e preocupação do requerido apenas com a divulgação e repercussão do fato pela imprensa (isso ela faz e bem, ainda que de modo efêmero) e sociedade, não propriamente com a resposta do Judiciário, que demora (violando o artigo 5º, LXXVIII, da CR) e, muitas vezes, quando chega, anos e mais anos depois, ainda pode vir a guardar bases inadequadas à concretização das promessas constitucionais sob as reservas vazias e surradas das teses de separação de poderes (tida como absoluta), da discricionariedade do administrador (conveniência e oportunidade sem limite para agentes políticos despóticos), quando não da falta de orçamento, caso último em que o direito viola preceito clássico de que a ninguém é dado se valer da sua própria torpeza.

4. Pois é. Enquanto o tempo for passando e o Judiciário brasileiro não tiver apropriação crítica suficiente para compreender que a prioridade da tutela coletiva precisa constituir situação real e concreta justamente para que não haja proteção insuficiente dos elevados interesses sociais e da própria Constituição, a notícia de muitas ações civis públicas não passarão de recado de que o Ministério Público e os demais legitimados (pode ser uma associação de bairro, por exemplo) cumpriram com o desempenho do seu papel. Isso definitivamente não basta ao Estado Democrático de Direito (artigo 1º, parágrafo único, da CR), ocupado que está da transformação social.

5. Mais do que indagarmos sobre os rumos da crise no Executivo e no Legislativo, então, é de se perguntar, até quando que a sociedade admitirá que processos envolvendo seus interesses continuem sendo julgados “no varejo” quando, no atacado, sem qualquer patriotismo, dormem em berço esplêndido nas prateleiras e escaninhos do Poder Judiciário, situação experimentada que conta com a conivência passiva e não raras vezes mórbida da cúpula do próprio Poder Judiciário, bem como órgãos e instâncias internas de fiscalização mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade dos julgamentos, com o volume do que com o efeito e repercussão de suas decisões em relação aos sujeitos beneficiários da prestação jurisdicional.

6. Nesse contexto, refletir sobre crise de funcionalidade, reconstruir o seu self a partir de outra imagem, ter mais consciência crítica de si, aliás, bem que poderia ser tarefa para o Poder Judiciário brasileiro e sua cúpula, a começar pela revisão dos critérios de seleção e formação de magistrados, no mais das vezes deficientes na formação continuada para o trato sensível e técnico dos interesses transindividuais. Antes houvesse mais Alexandres Morais da Rosa e Gerivaldos Alves Neiva espalhados por aí, magistrados (“blogueiros’, inclusive) que, respectivamente, partindo de Santa Catarina e Bahia, com seus trabalhos e escritos, mostram cotidianamente como o horizonte do Judiciário pode ser diferente se houver autocrítica e pretensão de largar o senso comum da fria e asséptica estatística (que só produz número e não propriamente qualidade e resultado) ou mesmo ter coragem em questionar a incoerência das súmulas e das jurisprudências dominantes construídas pelo senso comum teórico e não raras vezes sedimentadas nos Tribunais sob o critério da “indiscutibilidade” fossilizada.

7. Fala-se em Justiça para o século XXI, em novos paradigmas, mas o fato é que o Judiciário brasileiro, pela maioria daqueles que fazem a sua Administração, mesmo quando pontualmente se preocupa em “modernizar” a sua estrutura para maior eficácia (que significa muito mais do que ser eficiente), cogita apenas da “informatização” quando, na verdade, esta é apenas um instrumento, que, aliás, de nada adianta se a Justiça brasileira também não tiver preocupação com a aproximação com a comunidade (verdadeira “abertura de portas”) ou mesmo com a estruturação adequada da maioria das unidades jurisdicionais interioranas, aspecto último raro em um Judiciário no qual os Tribunais ainda são Palácios de mármore e granito recheados de recursos materiais e humanos de todos os tipos, espaços contrastantes com unidades jurisdicionais de interior que muitas vezes funcionam sem adequada estrutura, inversão de prioridades que muitas vezes não tem a resposta enérgica necessária dos órgãos de classe da magistratura, aos quais incumbe lutar por maior democracia interna, por reversão de paradigmas e prioridades, ainda que a AMB esteja dando positivos exemplos de protagonismo nesse sentido.

8. Se é bem verdade que a Constituição abriu as portas da Justiça e propiciou aumento da demanda em uma sociedade cada vez mais permeada pelo conflito e pela desigualdade, ao mesmo tempo que o Judiciário brasileiro pode até ser um razoável mediador e julgador de conflitos individuais frente a dimensão continental das demandas, no campo das ações coletivas, de modo geral, deixa muitíssimo a desejar! O tempo passa, mudam a relação das coisas no espaço, porém a prioridade do Judiciário brasileiro ainda é atrelada ao litígio monolítico voltado para a simplicidade individual (tutela Tício-Caio, ainda que os tempos não sejam de Império Romano), por mais de que detrás de outro processo, na pilha ali do lado, possa haver um grupo ou uma coletividade difusa sedenta por Justiça, quando não já desacreditada que desta algo possa esperar.

9. Pouco ou nada se muda, portanto, quando, a pretexto de atingir uma eficiência bem explicável pela preocupante escola da Análise Econômica do Direito/Law & Economics (Alexandre Morais da Rosa), estabelece-se, sob os holofotes da verdadeira “espetacularização” de uma visível promoção pessoal de seu Presidente Gilmar Mendes, uma desesperada Meta n. 02[1] via Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cujo teor é absolutamente míope e indiferente aos novos tempos de conflito de massa.

10. Houvesse “meta” específica para dar agilidade na tramitação de processos “coletivos”, especialmente os “mais antigos” e, aí sim, certamente, assegurado (não necessariamente ampliado) estaria o acesso à Justiça, pelo menos no que diz respeito ao direito de obtenção de uma prestação jurisdicional como garante o artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, qualquer que seja o seu conteúdo.

11. Perdida em frias estatísticas e números manipuláveis, sem correlação de variáveis, lamentável que o “processômetro” do Judiciário não tenha “contador” ou parâmetro específico para apurar o número de ações coletivas julgadas desde o advento da Lei n. 7.347-85 (Lei da Ação Civil Pública) e a própria Constituição da República.

12. Continua o Judiciário, na sua “cegueira” (Saramago), de modo geral, em absurdo digno de uma análise de “camusiana”, dando suicida e prioritário estímulo tratamento a demanda individual em detrimento das causas que versam sobre interesses sociais relevantes nos quais há embutida uma pluralidade de partes.

13. Quer dizer, entre dar andamento e emitir “numerosas” sentenças individuais de cunho patrimonial ou, ao contrário, impulsionar e prolatar sentenças em ações civis públicas nas quais se discuta a implementação de políticas públicas de educação, saúde, aplicação de sanção de improbidade por desvio de recursos públicos praticado por agente político corrupto, proteção do meio ambiente ou mesmo defesa de melhor orçamento para investimento na rede de atenção às crianças e adolescentes ou mesmo à ações socioassistenciais, é o próprio Conselho Nacional de Justiça que está ensinando ser melhor optar pelo primeiro caminho, afinal, talvez seja preferível julgar “para” unidades fazendo “barulho” e estardalhaço do que propriamente resolver problemas coletivos que, “por” mesmas unidades, revertem a milhares ou milhões, verdadeira e irracional “crise de funcionalidade” que hoje, para muitos (inclusive imprensa e sociedade), ainda passa despercebida e invisível...Falar em “novo Judiciário” neste contexto, como tem feito o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e CNJ, Gilmar Mendes, não passa de cínica retórica panfletária, para dizer o menos...

14. Por que os Tribunais reunidos e mesmo o atual representante da cúpula do Judiciário brasileiro não resolvem abrir uma meta para apurar e providenciar o julgamento e cadastramento prioritário de todos os processos que envolvem interesses coletivos? Isso sim poderia transformar gradualmente o Poder Judiciário.

15. Em tempos de reflexão, eis o quadro do Judiciário brasileiro ainda inexplicavelmente teimoso, antipático e arredio à tutela coletiva, problemática que talvez, além do estrito universo da ciência jurídica, precise, no caminho da interdisciplinaridade, constituir objeto de estudo pela psicanálise ou, quem sabe, pela própria sociologia. A propósito, o Judiciário que, por fragmento de sua Corte Suprema, muitas vezes deixa de impor ao Estado obrigação que lhe cabe a pretexto de não interferir no equilíbrio dos poderes, é o mesmo que, ali, no outro processo, se arvora no direito de insinuar negativa de reconhecimento a caráter político que pode adquirir determinada situação envolvendo asilo ou refúgio político (Caso Battisti em pauta no STF).

16. Mais do que aprimoramento dos métodos de trabalho e fiscalização do Ministério Público e dos demais legitimados na advocacia e defesa de interesses coletivos, quem sabe o remédio para combater esse vício de perspectiva do Judiciário brasileiro também não dependa, mais uma vez, da apropriação social e crítica da causa. Chegou a hora da sociedade também comprar esta briga.

17. Desafio do dia pela cidadania e acesso à justiça: dirija-se ao Poder Judiciário da sua cidade e busque uma certidão das ações civis públicas propostas certificando o seu conteúdo e o andamento, comparando a data da propositura (ou distribuição) com o momento presente, considerando, sempre, a natureza e o conteúdo do pedido na sua relevância para a vida em sociedade. Se achar que a demanda é relevante para a coletividade, cobre, pressione e fiscalize! Afinal, como diz a propaganda da Meta n. 2, “quem tem processo na Justiça quer que ele seja resolvido o quanto antes, é um direito justo”, afinal, a sociedade tem muitos processos na Justiça, e esta mesma sociedade e suas demandas, também “envelhecem”.

18. Por mais irônico que seja, especialmente para as duvidosas e excêntricas opiniões e decisões do atual Presidente do STF, Gilmar Mendes, que tanto se ocupa de criticar indevidamente o Ministério Público, a Meta n. 2 é a expressão mais viva de uma “espetacularização” panfletária capaz de significar a vitória do átomo sobre a molécula, não propriamente um “novo” Judiciário, por mais que de interesse egoísta, particular e inclusive autopromocional o mundo político e jurídico (também em crise), já esteja cheio...


[1] “Identificar os processos judiciais mais antigos e adotar medidas concretas para o julgamento de todos os distribuídos até 31.12.2005 (...)”