Roberto Rosselini (1906-1977),
célebre cineasta italiano, cuja filmografia contém dezenas de produções em aproximadamente quarenta anos dedicados à “sétima arte”, mostrou um recorte significativo
(verdadeira cinebiografia) e artístico do ilustre filósofo grego em Socrate (Sócrates -Itália. 1971, 120
minutos. Versátil Home Vídeo), uma de suas últimas produções.
A filmagem de “Sócrates”, concebida originariamente como produto para a televisão (o que talvez explique
os cortes abruptos entre diversas de suas marcantes cenas), realmente convence.
Os cenários precários montados bizarramente como se fossem “de papelão” ao fundo da cidade
de Atenas mostram que o bom cinema depende de diversos predicados, não
necessariamente de incremento tecnológico computacional por vezes
hiperbolizado, ainda mais nos dias de hoje, nos quais a quantidade não raras
vezes derrota a qualidade em quase tudo que se produz no campo artístico tomado pela "indústria cultural" do lixo.
O início do filme, rodado em
1970, mostra o impacto da histórica (e temporária) vitória imposta pelos
espartanos sobre os atenienses, tema a partir do qual, em
verdadeiro caminho rumo ao absurdo (sem ser Camus), desenvolve-se o enredo que tem como ponto culminante o acontecimento de que Sócrates (433 a 333 antes de cristo), o “questionador”, será levado a julgamento por seus pares por supostamente não crer nos deuses e por
corromper a juventude (qual o critério para ser jovem, afinal, indaga Sócrates a
um dos tiranos, o qual sucessivamente lhe responde que ser jovem é ter menos de 30
anos, no que o filósofo grego dá uma resposta sarcástica e irônica – recurso
último bem explorado em diversos momentos, especialmente no julgamento, por
exemplo, “que homem horrível é esse capaz de, sozinho corromper toda uma cidade?”),
acusado por Meleto, Ânico e Liton.
A derrubada dos muros de Atenas, as conjecturas desse momento e
o vai e vem cotidiano dos cidadãos atenenienses pelo cenário das casas de pedra, do solo
de terra, dos bustos, do mercado, dos prédios institucionais de pilares robustos, pode
funcionar como uma interessante metáfora para a injustiça praticada com
Sócrates, logo ele que tanto se preocupou com as questões da cidade. A imputação, da forma como retratada no
filme, é não crer nas ideias de Atenas (quais?), propor novas crenças (quais?),
corromper a juventude (como?), ou seja, a mais vaga, incerta e fantasiosa
possível (de certo modo kafkiana, também).
Sócrates, diferentemente de
outros oradores inclinados a atuarem como preceptores de nobres, nenhum
proveito financeiro obteve em benefício próprio (“desgraçadamente sou ignorante
e minha sabedoria é saber que nada sei e isso não pode ser vendido”), tendo
vida pobre cercada de provações, situação que, tal como o filme mostra, sempre
gerou sistemáticas cobranças familiares de sua esposa Xântipe, retratada em
dois momentos: primeiro como histérica esposa segundo a qual o trabalho do
marido e suas pregações aos seriam inúteis e somente serviriam para dar margem
a perseguições; depois, como sábia mãe que consola dos filhos pedindo que
esses se inspirem na coragem e exemplo do pai, redenção com a qual parece
compreender a grandeza do companheiro que tinha ao seu lado.
Depois de recusar-se de ser
defendido por Lisias, ao entender que sua bem intencionada retórica trabalharia
mais para a mentira do que para a verdade, coube à Sócrates encarregar-se da
sua própria defesa diante de mais de quinhentos jurados escolhidos na sorte, entre a fava branca e a negra. Como se defender de
uma acusação injusta e absurda? Eis a questão.
O fato é que nem mesmo uma
acusação absurdamente fraca e desprovida de qualquer elemento de prova afastou
Sócrates de ser coerente com a sua verdade (e condenado por 60 votos), o que incluía preferir morrer
esperando a sicuta tomar-lhe gananciosamente o corpo do que, nas suas palavras,
responder uma injustiça com uma
outra suposta “injustiça”, que, no seu entender, seria fugir da sanção do
Estado (“Se morro não é pelas leis, mas pelos homens”). Essa mesma ideia fez com que Sócrates não tenha aceitado transigir com a pena aplicada. Paradoxalmente, o mesmo
Estado que Sócrates apostou é aquele que lhe deu as costas e submeteu-o a
julgamento. Todavia, entre se insurgir contra o Estado e enfrentar a morte, Sócrates
prefere a segunda alternativa. A morte também tem sua dignidade muitas vezes
maior do que, na palavra de Sócrates, somar ridículos esforços para ficar vivo
a qualquer preço (que lição). Quem vai dizer se é melhor morrer ou continuar a viver, diz
Sócrates, é a divindade. Em último grau é ela quem irá julgar o rumo e o
sentido do seu “julgamento”.
A dimensão de alteridade de Sócrates é tanta
que nem na hora do seu desejo final ele não consegue fazer outra coisa a não
pensar os problemas coletivos da cidade, ocasião em que, no plano pessoal,
limita-se a pedir que seus filhos sejam duramente corrigidos e repreendidos se desviarem do caminho da virtude,
tal como ele faria se estivesse vivo. A mesma alteridade faz com que ele se banhe e se vista para morrer para evitar que a esposa tivesse esse desgosto.Sócrates também sabia que a felicidade
não está na beleza nem na riqueza, mas na busca de ser justo, na adequação do
conhecimento e da prática.
A cena de Sócrates explicando os
motivos pelos quais deveria fazer sua própria defesa e o modo como Sócrates se
porta no Tribunal já valeriam o filme, mostrando todo o seu potencial
reflexivo, especialmente se considerarmos a dificuldade que pretender expor
algumas linhas gerais de uma determinada linha filosófica pela lente do cinema.
Sócrates, na sua ignorância de
nada saber (que teria lhe rendido a indicação pelo oráculo), é consciente de
que não há nada pior do que as presunções, das pessoas que pretendem ter
opinião sobre tudo. Esse, na sua visão, foi um dos problemas da derrota de Atenas
para Esparta.
Uma outra lição de Sócrates bem
amparada em uma passagem destacada no filme é de que a medicina cura os corpos
e a política deveria curar a justiça e a busca do bem comum, embora saibamos
que infelizmente não é assim que as coisas funcionam (ah como estamos longe
disso, como precisamos de filosofia política para superar o que se assiste no âmbito
da realidade). A forma serena como se apresenta o caráter questionador de
Sócrates é um convite para um conhecimento mais adequado da sua proposta
filosófica longe da vulgata tradicional, algo, repita-se, muito difícil de se
fazer na linguagem do cinema.
Melhor que o filme só mesmo
comparar a coerência do retrato feito com os célebres discursos socráticos
(Apologia, Críton e Fédon) e aprofundar o debate filosófico sobre o caráter
satisfatório ou não da proposta.
Apesar de ser julgado pelos
motivos já expostos, tudo que Sócrates fazia era acreditar nos deuses, tanto
que, como o filme bem mostra, por isso suas palavras não vinham tão
naturalmente, por isso a sua aceitação da morte é resignada. A despedida de
Sócrates e suas reflexões sobre a morte como naturalidade que condena todos é
preciosa.
Loucura negar-se a obedecer a
ordem dos tiranos? Loucura em aceitar a morte com essa passividade? Como diz
Sócrates em certa altura do filme, as vezes é preciso ser louco para que cada
um diga a sua verdade de acordo com a sua maneira. E, como a certo momento diz
Sócrates, o sono, a morte (e porque não os bons filmes), inegavelmente dão
certa paz.
não vi esse filme mais lendo aqui acho que é bem da horinha.
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