quinta-feira, 30 de abril de 2009

A lição da Magna Carta


Em tempo de permanente validade e necessidade de se registrar o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) , nunca é demais lembrar que a raiz do principal e mais simbólico documento legal da limitação do poder do Estado, marco do constitucionalismo, reside na rica história inglesa e está materializado na letra latina miúda de uma das 04 (quatro) cópias restantes da Magna Carta original de 1215, duas das quais estão guardadas na preciosa biblioteca britânica de Londres, a British Library.

Por mais que a Magna Carta inglesa tenha sido obra de negociação política na qual a sociedade civil da época esteve representada na pressão pouco altruísta de ricos barões proprietários de terra, por mais que a Igreja (sempre ela) tenha levado apenas dois meses para emitir Bula Papal declarado a Magna Carta documento destituído de validade, por mais que Sua majestade inglesa, The King’s John, somente tenha aceitado e concordado com a elaboração do documento pressionado e acuado pelo forte e iminente risco de ter sua coroa conspurcada pela ameaça francesa (em um contexto onde fracassos militares pretéritos já tinham propiciado crise), fato é que a Carta Magna ou Magna Carta (a ordem não importa), ao longo de seus 63 artigos, constitui verdadeiro marco na história da humanidade (e do direito).

O signo da Magna Carta, a despeito de todos os seus problemas e de sua falta de legitimidade popular, da temporária guerra civil que lhe sucedeu, da dificuldade histórica vivenciada em solo inglês a partir da morte súbita do Rei John e da conseqüente assunção do trono por seu filho, o infante Henry III (situação que exigiu especial habilidade de parte do regente William Marshal), pode ser resumido na idéia essencial de que a lei (e as Constituições) submetem e vinculam todos os cidadãos, especialmente os governantes.

Segundo Claire Breay a Magna Carta inglesa, concebida nos arredores do Rio Tamisa, aproximadamente em junho de 1215, mesmo após posteriores rediscussões e reformulações do seu conteúdo, manteve um crucial e didático princípio que jamais poderemos esquecer : “the law as a power in its own right to wich the king, like his people, was subject”.

Ou seja, atualizando o problema, tal como o rei de ontem, o Estado de hoje precisa, mais do que nunca, estar submetido à força e ao império da Lei no respeito dos direitos humanos de seus cidadãos.

Direitos humanos, aliás, ao contrário do que muitos pensam, mais do que livrar “bandidos” em detrimento de “homens direitos”, existem para limitar os estragos causados pela força interventiva do Estado que a história sempre tratou de mostrar.

Assim, se ontem a Magna Carta valia para o rei coroado no exercício de sua dinastia, se seu uso tinha como foco restringir e limitar o poder até então amplo e ilimitado do monarca, não por acaso hoje os Estados soberanos democráticos deveriam ter e respeitar suas constituições como documentos supremos capazes de sinalizar os caminhos e as direções necessárias para que a sociedade civil atinja a felicidade da justiça material.

Se infelizmente assim ainda não ocorre, se muitas Constituições, como a brasileira, acabaram se tornando verdadeiras “colchas de retalhos” com sucessivas e abusivas emendas (poder constituinte derivado), se muitos capítulos dos textos constitucionais que asseguram princípios, objetivos e direitos fundamentais não passam de meras exortações teóricas postas no que não passa de uma folha de papel sem concretização na realidade, essa rasteira e baixa sensação de constitucionalidade passa não só pela omissão da mídia, dos meios de imprensa, mas, sobretudo, por falta de engajamento e maior construção de cidadania de parte da sociedade, que precisa estar consciente e informada da força do que na sua Constituição está dito, escrito e, sobretudo, idealizado.

Lembrando que a Magna Carta foi produzida da Inglaterra, terra de William Shakespeare e toda sua vasta produção literária, talvez a maior tragédia das constituições contemporâneas, especialmente a brasileira, esteja em ser ou não ser, eis a questão...

Para mudar este quadro, tudo depende da mobilização da sociedade, da educação e, sobretudo, obviamente, da revisão epistemológica e metodológica da composição e do funcionamento do Supremo Tribunal Federal como verdadeira Corte Constitucional, que, para lembrar outra célebre escritora inglesa (Jane Austen), precisa decidir e INTERPRETAR o texto e a norma constitucional com razão e sensibilidade, não com política judiciária minúscula, não com outros pactos midiáticos simbólicos oportunistas ou mesmo simplista edição de “súmulas” aprisionadoras de mentes e sentidos, quando não propriamente impeditivas de emancipadora e necessária transformação.

A propósito, qual o motivo de as promessas de cidadania frustradas pelo Estado Brasileiro ainda serem constantemente alvo de contornos e de falta de efetividade de parte do Judiciário brasileiro diante das “reservas” sempre lembradas da “lei” (discurso: a lei não permite; a lei não prevê ou a lei prevê mas não me permite efetivar por força do princípio da separação de poderes) e “do possível” (discurso: não tem orçamento; não tem recursos suficientes para pagar; se implementar este direito o “Estado quebra”)?

Como confiar em um Legislativo que carece de legitimidade e atravessa crises e escândalos sucessivos, que legisla qualitativamente muito mal, máxime quando o Judiciário pode apresentar cúpula e presidências temporariamente despóticas e monárquicas capaz de lhe retirar a mínima credibilidade que precisa ter enquanto poder?

A propósito, quem limita representante do Judiciário quando este parece querer passar de “rei” como se exercesse poder a partir de uma dinastia cuja origem é desconhecida?

Ai daqueles humanos, demasiado humanos (Nietzsche) que ousarem colocar o tema sob discussão rompendo com a liturgia do poder, que por muito tempo se teve erroneamente como divino e sagrado, lição que talvez muitos não tenham aprendido. Para estes, realmente, até pode soar como “destempero” alguém se esforçar para mostrar e quem sabe fazer o direito achado e praticado na rua (Boaventura) ou mesmo a rua capaz de encontrar o endereço do que pareça mais direito. De qualquer maneira, ter autenticidade de dizer e se sustentar o que se acredita, mais do que prova de coragem e idealismo, pode ser apenas o promissor começo de pautar a necessidade de se discutir e lembrar a origem e o marco da democracia material e, sobretudo, do que há de melhor na substância e história quase milenar da Carta Magna...

Be or not to be, that is the question...

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