sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Morte


1. Nascemos com a certeza de que, assim como houve um começo, terá de haver um fim para nossa existência material. A infâmia é justamente nascer para morrer, não se sabe quando nem onde (CLARICE LINSPECTOR).

2. Permeada de dor e saudade, dinamizada e modificada na sua sensibilidade pelo transcorrer do tempo, a morte e a percepção crua da finitude que a caracteriza, talvez seja a experiência-limite de maior trauma e desafio para a existência humana.


3. Mesmo sabendo que a morte virá nos visitar, a sensação é que nunca estamos preparados para enfrentar a sua temível chegada, o que vale não só para a vivência individual de cada um, mas, especialmente, abrange a forma como somos obrigados a resistir ao falecimento de terceiros que amamos, admiramos ou simplesmente conhecemos.


4. Irreversível é a morte e imediatamente devastadores são seus efeitos. A inconformidade e resistência natural do ser humano em se relacionar com a morte passa pela terrível necessidade lógica de admitirmos o desaparecimento de alguém, algo similar a leitura melancólica do último capítulo de uma história, caminho segmentado e interrompido marcado por uma dolorosa falta "lacaniana", de tantas e desmedidas coisas que parecem ter ficado por fazer ou por dizer...


5. Todavia, por mais que o luto seja compreensível e necessário, devendo ser enfrentado de frente e sem subterfúgios, há de se ter o cuidado de não fazer da sua experiência infinita fonte de masoquismo e de busca irracional e desmedida culpa, algo infelizmente fomentado por fragmentos do cristianismo, sobre o que tão bem já discorreu o genial existencialista JEAN PAUL SARTRE.


6. De outro lado, morrer e querer entender o sentido e o mistério da vida é abrir caminho para eterna reticência, página em branco esperando tinta para ser escrita, inesgotável objeto de estudo. Desafio permanente para a filosofia, psicologia e medicina através da racionalidade, também integra a morte solo fértil para busca de explicações metafísicas que, para aquém e além da ciência, tem nas religiões verdadeiro caleidoscópio de dogmas, crença e fé. Muitas são as possibilidades e compreensões da morte não propriamente como fim, mas como transição de estado, espécie de "curva na estrada" (FERNANDO PESSOA), espiritualidade que inevitavelmente traz maior conforto, ainda que por ela não possamos fazer escolha.


7. Na morte a sensação de vazio, longe de ser aparente ou hiperdimensionado, é assustadoramente real e presente. Mesmo em tempos de reconhecida valorização do senso linguístico, faltam palavras para expressar a morte como experiência traumática a ser enfrentada no percurso árduo da existência. A impotência, o medo, a angústia e a proximidade do absurdo (CAMUS) são sentimentos reveladores da morte como situação de desespero para a limitada condição humana, talvez porque a sua inevitabilidade e irreversibilidade retire algo que sempre buscamos de modo consciente ou inconsciente: esperança.


8. De outro lado, as ordens civilizatórias históricas sempre tiveram na morte um elemento relevante para estabelecerem seus marcos de convivência e a construção da sua própria cultura, por mais que diferenças significativas existam quando se encara a temática da lado ocidental ou oriental. Por aí já vemos que a morte não precisa significar pura e simples destruição, tudo depende da forma e da lente através da qual a encaramos, da visão em paralaxe, como bem ensina ZIZEK.


9. Ao mesmo tempo que constitui tema desolador, aceitar a morte integra temática de pré-compreensão estritamente necessária, unilateral certeza que temos em tempos de pós-modernos nos quais a (i) mortalidade pelo próprio modo de vida caracteriza típica ilusão vital (BAUDRILLARD) que um dia chega para cobrar o seu preço...


10. Não obstante constitua experiência indiscutivelmente dramática, vencido o efeito corrosivo da perda de alguém que amamos, sem dúvida que mesmo essa experiência pode ser enriquecedora e pedagógica, e porque não fortalecer a condição de ser-aí-no-mundo (HEIDEGGER), nem que seja para explicar a inexorabilidade de sua finitude e, por conta disso, a necessidade de aproveitarmos o tempo e a forma de nossa experiência, incluindo o modo como nos relacionamos com o terceiros, com a natureza, e porque não com o próprio mundo.

11. Nesse contexto, o maior "recado" que a morte pode dar, além da dor e eterna saudade de quem perdemos, do verdadeiro suplício que é a súbita sensação de irreversibilidade do desaparecimento físico de alguém, passa justamente pela absorção do sentido de que a vida existe para ser celebrada com intensidade, a cada momento simples, com seu sabor doce e também com seu gosto amargo, sem qualquer tipo de vinculação ou adiamento de felicidade. Afinal, não sabemos quando estamos vivendo uma experiência pela última vez ou quando estamos nos despedindo de alguém que amamos com o último beijo ou abraço...


12. Saber viver e conviver de modo inteligente com a mortalidade precisa ser nosso próprio horizonte de sentido (GADAMER), por mais que este desafio parece algo propriamente invencível... Queiramos ou não, vida e morte são aspectos inerentes ao percurso da existência...


13. Se a morte é uma viagem e seu culto a preparação para um verdadeiro rito de passagem, que saibamos levar conosco a lição de MACHADO DE ASSIS, no sentido de que o tempo é o ministro da morte, mais do que isso, o principal elemento para metamorfosear as suas sensações e efeitos. Daí porque é de se desejar que tenhamos a autenticidade, mais do que isso, a verdadeira sabedoria, para desfrutarmos dos momentos felizes no melhor de nossa subjetividade, até mesmo porque são as lembranças e as recordações desses eventos que, juntamente com o fluir do tempo e o passar das estações, ajudarão a amenizar, e muito, os reflexos da morte ou da falta de alguém que perdemos...

14. De qualquer modo, não necessariamente o término da existência precisa estar além da própria experiência. Não devemos esperar a morte para perceber com clareza a transitoriedade e a resolutividade de todas as outras coisas e problemas banais que não raras vezes indevida e cotidianamente superdimensionamos. Fazer do menos mais, a todo tempo, não deixa de ser uma forma tola de suicídio. Que ninguém negue a morte como possibilidade complexa e enriquecedora reflexão, ainda que forçada. Não necessariamente precisa ser assim...


15. Por essas e outras que precisamos ter a clareza de perceber e admitir a ideia da morte enquanto estamos vivos, justamente para que possamos definir, da melhor forma, o que queremos e onde pretendemos chegar com o "prazo de validade" indeterminado e incerto da nossa existência. Trata-se apenas de seguir a lição do saudoso GONZAGUINHA, de viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Por mais que saibamos que a vida podia ser bem melhor e será, apesar de tudo não podemos deixar de dizer e repetir que ela é bonita, é bonita e é bonita...


15. Na verdade, como bem ensina o lúcido escritor e cineasta GUILHERMO ARRIAGA, paradoxalmente é a morte que dá sentido à vida, revelando, ainda que de modo trágico e traumático, por vezes súbito, todo seu maravilhoso e muitas vezes esquecido e real sentido. Será que já não é hora de encararmos a morte (e a vida) como unidimensionais anseios metafísicos? Que é que estamos esperando? Sejamos sábios responsáveis pelas nossas escolhas, do nascimento à morte, da biografia ao epitáfio...


sábado, 3 de outubro de 2009

Fragmentos do jardim de inverno "nerudiano" em tempo de primavera



Pablo Neruda é uma daquelas personalidades que, sem dúvida, enaltecem e consolidam a crença de que um horizonte mais próspero e humano não só é verdadeiramente possível, como também constitui bruta e utópica necessidade para equilibrar tempos de excessiva liquidez.

Chileno, nascido em Parral (12 de julho de 1904), o genial poeta Ricardo Neftali Reyes Basoalto, brindado com o célebre e imortal apelido em homenagem ao theco Iovato Jan Neruda (também poeta), teve vocação para viver com intensidade, inteligência e sensibilidade suficiente, virtudes que lhe permitiram descrever de modo concreto a paradoxalmente abstrata essência das coisas, até o limite...

Tanto é assim que a vida de Pablo Neruda não resistiu muitos dias mais ao genuinamente catastrófico 11 de setembro de 1973, data marcante do histórico golpe militar que sacou seu amigo pessoal Salvador Allende do então democrático e emancipatório governo chileno, mais uma cínica cena entre tantas violências patrocinadas pelo sistema-mundo estadunidense no restante da América Latina.

Em tempos de globalização neoliberal desumanizante, recortar e bricolar um pouco desses fragmentos pode fazer toda a diferença. Assim, se recordar, na origem do termo, é, como ensina Galeano, transpor fatos e lembranças pelo coração, que venha o sabor de “salteados” fragmentos da poética nerudiana em tempo de primavera....


No falta nada en jardín
Y no fuímos capaces de perder la mirada
Y me acostumbré a caminar consumido por mis pasiones

Hay que conocer ciertas virtudes
normales, vestimentas de cada dia
que de tanto ser vistas parecen invisibles

Pero no tuve tiempo ni tinta para todos

Llaman em circunstancias solitárias
Y hay que abrir, hay que oír os que no tiene voz
Hay que ver estas cosas que no existen

Ahora la verdad es el regresso
Mi única travesía es um regresso

Yo soy uno de aquellos que no alcanzó a llegar al bosque
El pan de la palabra cada dia

No hay salida para este volver

A uno mismo, a la piedra de uno mismo

Ya no hay mas estrella que el mar

Apropriação minimamente criativa e subjetiva da sábia filosofia “nerudiana” pode revelar múltiplos emancipatórios sentidos e significados no complexo universo da linguagem...A propósito, será que já não chegou a hora de acordarmos para o amanhã a partir de alguns pontos comuns e de consenso?

Não há maior risco a não ser a própria imaginação e paciência de esperar....

Que tenhamos a sabedoria de não deixar faltar nada de humano ao nosso jardim de cada dia, longe do materialismo banal que nos enfraquece.

Que, mesmo em tempo de pós-modernidade, tenhamos a sabedoria de não perder o olhar sensível, crítico e subjetivo, por mais que a pseudo-segurança das falaciosas interpretações monolíticas estejam de guarda-chuva aberto em cada esquina.

Que saibamos caminhar pela vida consumidos pela paixão no compromisso permanente de nos tornarmos mais solidários, desafio insólito em tempos de individualismo egoísta e desagregador.

Que saibamos conhecer as virtudes e as verdades possíveis com suas roupagens variáveis e relativas de cada dia, sempre duvidando do seu conteúdo e de tudo aquilo que parece claro e indiscutível.

Que a fraternidade não seja invisível e que a exposição midiática dos temas que ocupam o cotidiano permita verdadeira percepção e conscientização do tanto que há por fazer (dizer que "ainda há muito a fazer" seria demasiado otimismo revelador de que estamos fazendo alguma coisa).

Mais...

Que tenhamos tempo e tinta para todos aqueles que gostamos, com os quais compartilhamos os pedaços felizes e substanciais da existência.

Que saibamos ser humildes e tenhamos a esperada alteridade para ouvir os que não tem voz, para ver aqueles que muitos material e economicamente não existem na lenta míope de muitos governos.

Que deixemos um pouco a estética para repensar a ética de uma existência de verdadeira libertação.

Que saibamos a importância do regresso na travessia quando se quer chegar no bosque da simplicidade como caminho.


Que saibamos valorizar a necessidade do pão de cada dia sem outras e menores preocupações, colocando no seu devido lugar excessos supérfluos dispensáveis ou puramente ornamentais.

Que saibamos ver que a saída para uma nova ordem civilizatória está gravada na pedra e na existência de cada um de nós...em nenhum lugar mais.

Que possamos apreciar a criatividade e a força da vida e dos sonhos que se renovam no brilho das estrelas e na força e imensidão do mar...

Fragmentos “salteados” do fértil jardim nerudiano em tempo de florescer a primavera permanente das ideias...

sábado, 12 de setembro de 2009

O que mudou (na crise global e) no Judiciário? A “cegueira” da Meta n. 2 do CNJ: “espetacularização” da vitória do átomo sobre a molécula.



É superação da totalidade, mas não só como atualidade do que está em potência no sistema. É a superação da totalidade desde a transcendentalidade interna ou da exterioridade, o que nunca esteve dentro. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema (não havia potência para isso), é realizar o novo, o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade incondicionada, revolucionária, inovadora.
Enrique Dussel.

1. Em tempos de regime opressivo de economia capitalista global, em período de difícil convivência e (dis) sociação na multiplicidade de expectativas egoísticas estimuladas pelo regime da sociedade neoliberal de consumo (Baudrillard), que tanto contribui para diluição da subjetividade crítica e para a perda de solidariedade, a grande pergunta da atualidade é: o que propriamente mudou com o percurso de um ano da dita “crise mundial”? Mesma reflexão poderia ser feita sobre a passagem dos setenta anos do começo da II Guerra Mundial ou mesmo sobre os oito anos seguintes à queda das Torres Gêmeas. Todavia, outro pode ser um foco de balanço, novo pode ser o debate de um tema que, ao contrário dos primeiros, por não ser costumeiramente veiculado com destaque e responsabilidade pela mídia (só para variar) conseqüentemente acaba escapando à apropriação crítica pela sociedade.

2. Se os conflitos sociais visivelmente deixaram a estrutura do “átomo” para comporem genuínas “moléculas”, migrando cada vez mais do campo individual para os interesses coletivos, tanto é assim que um microssistema processual coletivo foi e continua sendo criado (aqui a falha definitivamente não é do legislador, pelo menos sob o ponto de vista da omissão), fato é que, de modo geral, convivemos com um Poder Judiciário cujos olhos estão literalmente vendados e direcionados para o perfil de litígio do século passado, mais preocupado com a resolução de conflitos individuais (e patrimoniais) do que, propriamente, ocupado de priorizar julgamento de questões que envolvem interesses difusos e coletivos da sociedade permeados de interesse público, aqueles que, pela sua natureza, complexidade e dimensão, propriamente podem cumprir para efetivar o Estado Democrático de Direito e fazer cumprir os tantos direitos que a Constituição da República prometeu, missão efetiva e precípua do Ministério Público como órgão defensor da sociedade.

3. Não por acaso (e a classe política claro que já sabe disso), dizer que o Ministério Público irá propor em nome da sociedade uma determinada ação civil pública frente a determinado demandado-réu (seja ele pessoa física jurídica de direito privado ou, principalmente, pessoa jurídica de direito público da União, Estados e Municípios) muitas vezes não significa mais do que medo e preocupação do requerido apenas com a divulgação e repercussão do fato pela imprensa (isso ela faz e bem, ainda que de modo efêmero) e sociedade, não propriamente com a resposta do Judiciário, que demora (violando o artigo 5º, LXXVIII, da CR) e, muitas vezes, quando chega, anos e mais anos depois, ainda pode vir a guardar bases inadequadas à concretização das promessas constitucionais sob as reservas vazias e surradas das teses de separação de poderes (tida como absoluta), da discricionariedade do administrador (conveniência e oportunidade sem limite para agentes políticos despóticos), quando não da falta de orçamento, caso último em que o direito viola preceito clássico de que a ninguém é dado se valer da sua própria torpeza.

4. Pois é. Enquanto o tempo for passando e o Judiciário brasileiro não tiver apropriação crítica suficiente para compreender que a prioridade da tutela coletiva precisa constituir situação real e concreta justamente para que não haja proteção insuficiente dos elevados interesses sociais e da própria Constituição, a notícia de muitas ações civis públicas não passarão de recado de que o Ministério Público e os demais legitimados (pode ser uma associação de bairro, por exemplo) cumpriram com o desempenho do seu papel. Isso definitivamente não basta ao Estado Democrático de Direito (artigo 1º, parágrafo único, da CR), ocupado que está da transformação social.

5. Mais do que indagarmos sobre os rumos da crise no Executivo e no Legislativo, então, é de se perguntar, até quando que a sociedade admitirá que processos envolvendo seus interesses continuem sendo julgados “no varejo” quando, no atacado, sem qualquer patriotismo, dormem em berço esplêndido nas prateleiras e escaninhos do Poder Judiciário, situação experimentada que conta com a conivência passiva e não raras vezes mórbida da cúpula do próprio Poder Judiciário, bem como órgãos e instâncias internas de fiscalização mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade dos julgamentos, com o volume do que com o efeito e repercussão de suas decisões em relação aos sujeitos beneficiários da prestação jurisdicional.

6. Nesse contexto, refletir sobre crise de funcionalidade, reconstruir o seu self a partir de outra imagem, ter mais consciência crítica de si, aliás, bem que poderia ser tarefa para o Poder Judiciário brasileiro e sua cúpula, a começar pela revisão dos critérios de seleção e formação de magistrados, no mais das vezes deficientes na formação continuada para o trato sensível e técnico dos interesses transindividuais. Antes houvesse mais Alexandres Morais da Rosa e Gerivaldos Alves Neiva espalhados por aí, magistrados (“blogueiros’, inclusive) que, respectivamente, partindo de Santa Catarina e Bahia, com seus trabalhos e escritos, mostram cotidianamente como o horizonte do Judiciário pode ser diferente se houver autocrítica e pretensão de largar o senso comum da fria e asséptica estatística (que só produz número e não propriamente qualidade e resultado) ou mesmo ter coragem em questionar a incoerência das súmulas e das jurisprudências dominantes construídas pelo senso comum teórico e não raras vezes sedimentadas nos Tribunais sob o critério da “indiscutibilidade” fossilizada.

7. Fala-se em Justiça para o século XXI, em novos paradigmas, mas o fato é que o Judiciário brasileiro, pela maioria daqueles que fazem a sua Administração, mesmo quando pontualmente se preocupa em “modernizar” a sua estrutura para maior eficácia (que significa muito mais do que ser eficiente), cogita apenas da “informatização” quando, na verdade, esta é apenas um instrumento, que, aliás, de nada adianta se a Justiça brasileira também não tiver preocupação com a aproximação com a comunidade (verdadeira “abertura de portas”) ou mesmo com a estruturação adequada da maioria das unidades jurisdicionais interioranas, aspecto último raro em um Judiciário no qual os Tribunais ainda são Palácios de mármore e granito recheados de recursos materiais e humanos de todos os tipos, espaços contrastantes com unidades jurisdicionais de interior que muitas vezes funcionam sem adequada estrutura, inversão de prioridades que muitas vezes não tem a resposta enérgica necessária dos órgãos de classe da magistratura, aos quais incumbe lutar por maior democracia interna, por reversão de paradigmas e prioridades, ainda que a AMB esteja dando positivos exemplos de protagonismo nesse sentido.

8. Se é bem verdade que a Constituição abriu as portas da Justiça e propiciou aumento da demanda em uma sociedade cada vez mais permeada pelo conflito e pela desigualdade, ao mesmo tempo que o Judiciário brasileiro pode até ser um razoável mediador e julgador de conflitos individuais frente a dimensão continental das demandas, no campo das ações coletivas, de modo geral, deixa muitíssimo a desejar! O tempo passa, mudam a relação das coisas no espaço, porém a prioridade do Judiciário brasileiro ainda é atrelada ao litígio monolítico voltado para a simplicidade individual (tutela Tício-Caio, ainda que os tempos não sejam de Império Romano), por mais de que detrás de outro processo, na pilha ali do lado, possa haver um grupo ou uma coletividade difusa sedenta por Justiça, quando não já desacreditada que desta algo possa esperar.

9. Pouco ou nada se muda, portanto, quando, a pretexto de atingir uma eficiência bem explicável pela preocupante escola da Análise Econômica do Direito/Law & Economics (Alexandre Morais da Rosa), estabelece-se, sob os holofotes da verdadeira “espetacularização” de uma visível promoção pessoal de seu Presidente Gilmar Mendes, uma desesperada Meta n. 02[1] via Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cujo teor é absolutamente míope e indiferente aos novos tempos de conflito de massa.

10. Houvesse “meta” específica para dar agilidade na tramitação de processos “coletivos”, especialmente os “mais antigos” e, aí sim, certamente, assegurado (não necessariamente ampliado) estaria o acesso à Justiça, pelo menos no que diz respeito ao direito de obtenção de uma prestação jurisdicional como garante o artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, qualquer que seja o seu conteúdo.

11. Perdida em frias estatísticas e números manipuláveis, sem correlação de variáveis, lamentável que o “processômetro” do Judiciário não tenha “contador” ou parâmetro específico para apurar o número de ações coletivas julgadas desde o advento da Lei n. 7.347-85 (Lei da Ação Civil Pública) e a própria Constituição da República.

12. Continua o Judiciário, na sua “cegueira” (Saramago), de modo geral, em absurdo digno de uma análise de “camusiana”, dando suicida e prioritário estímulo tratamento a demanda individual em detrimento das causas que versam sobre interesses sociais relevantes nos quais há embutida uma pluralidade de partes.

13. Quer dizer, entre dar andamento e emitir “numerosas” sentenças individuais de cunho patrimonial ou, ao contrário, impulsionar e prolatar sentenças em ações civis públicas nas quais se discuta a implementação de políticas públicas de educação, saúde, aplicação de sanção de improbidade por desvio de recursos públicos praticado por agente político corrupto, proteção do meio ambiente ou mesmo defesa de melhor orçamento para investimento na rede de atenção às crianças e adolescentes ou mesmo à ações socioassistenciais, é o próprio Conselho Nacional de Justiça que está ensinando ser melhor optar pelo primeiro caminho, afinal, talvez seja preferível julgar “para” unidades fazendo “barulho” e estardalhaço do que propriamente resolver problemas coletivos que, “por” mesmas unidades, revertem a milhares ou milhões, verdadeira e irracional “crise de funcionalidade” que hoje, para muitos (inclusive imprensa e sociedade), ainda passa despercebida e invisível...Falar em “novo Judiciário” neste contexto, como tem feito o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e CNJ, Gilmar Mendes, não passa de cínica retórica panfletária, para dizer o menos...

14. Por que os Tribunais reunidos e mesmo o atual representante da cúpula do Judiciário brasileiro não resolvem abrir uma meta para apurar e providenciar o julgamento e cadastramento prioritário de todos os processos que envolvem interesses coletivos? Isso sim poderia transformar gradualmente o Poder Judiciário.

15. Em tempos de reflexão, eis o quadro do Judiciário brasileiro ainda inexplicavelmente teimoso, antipático e arredio à tutela coletiva, problemática que talvez, além do estrito universo da ciência jurídica, precise, no caminho da interdisciplinaridade, constituir objeto de estudo pela psicanálise ou, quem sabe, pela própria sociologia. A propósito, o Judiciário que, por fragmento de sua Corte Suprema, muitas vezes deixa de impor ao Estado obrigação que lhe cabe a pretexto de não interferir no equilíbrio dos poderes, é o mesmo que, ali, no outro processo, se arvora no direito de insinuar negativa de reconhecimento a caráter político que pode adquirir determinada situação envolvendo asilo ou refúgio político (Caso Battisti em pauta no STF).

16. Mais do que aprimoramento dos métodos de trabalho e fiscalização do Ministério Público e dos demais legitimados na advocacia e defesa de interesses coletivos, quem sabe o remédio para combater esse vício de perspectiva do Judiciário brasileiro também não dependa, mais uma vez, da apropriação social e crítica da causa. Chegou a hora da sociedade também comprar esta briga.

17. Desafio do dia pela cidadania e acesso à justiça: dirija-se ao Poder Judiciário da sua cidade e busque uma certidão das ações civis públicas propostas certificando o seu conteúdo e o andamento, comparando a data da propositura (ou distribuição) com o momento presente, considerando, sempre, a natureza e o conteúdo do pedido na sua relevância para a vida em sociedade. Se achar que a demanda é relevante para a coletividade, cobre, pressione e fiscalize! Afinal, como diz a propaganda da Meta n. 2, “quem tem processo na Justiça quer que ele seja resolvido o quanto antes, é um direito justo”, afinal, a sociedade tem muitos processos na Justiça, e esta mesma sociedade e suas demandas, também “envelhecem”.

18. Por mais irônico que seja, especialmente para as duvidosas e excêntricas opiniões e decisões do atual Presidente do STF, Gilmar Mendes, que tanto se ocupa de criticar indevidamente o Ministério Público, a Meta n. 2 é a expressão mais viva de uma “espetacularização” panfletária capaz de significar a vitória do átomo sobre a molécula, não propriamente um “novo” Judiciário, por mais que de interesse egoísta, particular e inclusive autopromocional o mundo político e jurídico (também em crise), já esteja cheio...


[1] “Identificar os processos judiciais mais antigos e adotar medidas concretas para o julgamento de todos os distribuídos até 31.12.2005 (...)”

domingo, 30 de agosto de 2009

Algumas linhas sobre interpretação & hermenêutica e a “pedra no caminho” (STF): não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa...


“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei deste acontecimento (...)
Nunca me esquerecei que no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade

Encontrar o Direito no caminho da Justiça é tarefa que exige interpretação e compreensão de normas (regras e princípios) em nome de plurais sentidos, tarefa valorativa de escolha, que até pode ser pretensamente imparcial sob o ponto de vista objetivo, nunca subjetivamente neutra. Declarar e extrair sentidos, mais do que cega e determinista representação própria de um pobre silogismo, precisa constituir ato técnico e, sobretudo, motivado, forjado, de preferência, longe do senso comum teórico e dos grilhões dos sedativos entendimentos ditos dominantes, herdeiros da mítica (e enganosa) segurança jurídica. Como ato humano que é, obviamente que essa difícil missão não está longe do erro, dos vícios, muito menos da discussão do questionamento, do pensamento, inclusive dos limites democráticos das escolhas feitas... Estudar e compreender a compreensão e aplicação da lei como fenômeno é missão para a hermenêutica, a ciência da interpretação.
Assim, superada a equivocada ideia de que a interpretação se encerra míope e univocamente no texto da lei (quando dele apenas parte e começa), a busca dos muitos significados e universos possíveis, além de grande aventura no campo do saber, talvez seja uma das maiores provas de que o Direito é um produto eminentemente cultural e, como tal, sempre aberto ao espírito livre para pensar e refletir criticamente sobre novos paradigmas, suas muitas verdades, especialmente aquelas capazes de interferência positiva e significativa na realidade, notadamente quando tem a possibilidade de serem peremptórias e definitivas.
A propósito, no permanente desafio de se interpretar bem a lei (ou o que mais se parece com ela nos seus requisitos essenciais), é o balanceamento e equilíbrio de um conjunto de variáveis que será determinante para uma boa ou má trajetória, que, definitivamente, passa longe por uma misteriosa e enganosa busca de uma vontade etérea (e sempre invisível) do legislador: a maldita “mens legis”.
Quem tem que interpretar e se posicionar é o intérprete, aqui e agora, no horizonte e na constelação da sua consciência com as ferramentas técnicas e intelectuais que dispõe, pois é desta aplicação que há o verdadeiro encontro do sujeito (intérprete) com o objeto (norma), verdadeira e inexorável simbiosa entre a teoria e a prática, desafio constante da ciência...(que, claro, como ensina EDGAR MORIN, não se faz sem “consciência”, sem uma ética voltada para valores da humanidade). Qualquer outra influência que não a convicção e a consciência é perniciosa, quando não propriamente ato desonesto da maior multiplicidade...
Como ensina PAULO QUEIROZ, tal como na arte e na música, o compromisso de se interpretar passa por uma dose de talento, ainda que o peso decisivo esteja com a vontade (quando não “desejo” psicanalítico) de se obter o justo, sucesso que depende do foco e da sensibilidade da lente através da qual este objetivo é buscado. Mais do que talento, vontade e sensibilidade, a segurança do caminho a seguir depende do que se sabe, passa pelo conteúdo do que se acredita, do que se quer intimamente buscar...ainda que isso jamais possa se constituir em blindagem para que se possa dizer tudo sobre qualquer coisa de modo livre de conseqüências, especialmente quando o fim visado constitui uma escolha ou verdadeira troca impossível (BAUDRILLARD).
Quando inexiste esta vontade de justo ou quando pré-compreensões viciadas influenciam a vontade de se produzir resultado de julgamento num determinado sentido, quando está ausente espaço e possibilidade democrática para encontro dialógico de minha convicção com o pensamento e questionamento alheio, aí começam os problemas...
Nesse panorama, descobrir a hermenêutica, na teoria e prática, nada mais é do que adquirir habilitação e instrumentos para o desvendamento e revelação de novos rumos e paradigmas, pressupostos para a busca de emancipatórios horizontes de compreensão e de sentido.
Nessa árdua missão interpretativa, a única certeza que se tem é o que esse sonhado e esperado justo, além de uma boa lei, passa por interpretar bem, especialmente quando se tem a única (ou a última chance de assim fazer), quando o horizonte de sentido escolhido pode enterrar um resultado juridicamente definitivo.
Por falar em interpretação e hermenêutica nesses termos, está mais do que na hora de se discutir a capacidade de julgamento do Supremo Tribunal Federal por decisões recentes (v.g, 1 - lei abusiva que permite a privatização e exploração do petróleo como riqueza natural; 2 - na distinção absurda feita entre cargos comissionados “de primeiro escalão” e de “agentes políticos” que permitiria tolerância ao nepotismo; 3 - em violações explícitas aos direitos de trabalhadores na nova Lei de Falências e Recuperação Judicial; 4 - ideia de que a gestão democrática do ensino público é incompatível com eleições diretas nas escolas públicas por questões burocráticas e atreladas puramente à iniciativa, e tantas outros precedentes mais...).
Como exemplo cabal do problemático e desabonador histórico recente do STF, que dizer então do “entendimento” adotado recentemente pela Corte Constitucional brasileira dando a entender que a “justa causa” no exame de denúncia contra réus que detém foro privilegiado (ex: ex-Ministro Palocci e o escândalo da quebra de sigilo do “caseiro”) pode se confundir com o mérito ao ponto de cercear atribuição constitucional do Ministério Público como titular da ação penal (artigo 129, I, do CR) e permitir negativa de vigência de disposição constitucional cuja força normativa (HESSE) precisa valer para todos e não apenas para clientes costumeiros da seletiva agência penal? Impedir pura e simplesmente a possibilidade da apuração de uma denúncia, da produção democrática de provas sobre ela dentro do devido processo legal, aliás, não é o que, guardadas as proporções e a transferência de esferas, fez a Comissão de Ética do próprio Senado Federal no “caso Sarney”, situação que mereceu tanto alarde e badalação da grande mídia?
Se é bem verdade que a hermenêutica pode estar em crise, que interpretar bem passa pela renovação e qualificação do ensino jurídico, pela superação da cultura positivista no caminho da interdisciplinaridade, talvez esteja na hora de se entender que interpretar bem a Constituição também passa pelo direcionamento de maior foco crítico a julgamentos concretos recentes do STF enquanto Corte Constitucional, na ótica e no arco-íris da linguagem...
Preocupante quando a “pedra no meio do caminho” (v.g, da concretização do princípio republicano da responsabilidade na esfera da persecução penal) é colocada por Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal, mínima e necessária reflexão que não pode deixar os fatos caírem no esquecimento...especialmente se formos buscar a raiz e a origem das coisas.
Afinal, como ensina LÊNIO STRECK, não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa e, por maior que seja a artimanha ou a retórica do discurso, até mesmo para a interpretação existem limites, especialmente no exercício da jurisdição constitucional pelo “monastério dos sábios”, que precisa estar sob o permanente crivo da capacidade crítica de todos nós enquanto “seres-aí”, pois a maior prova de “inautenticidade” (HEIDEGGER) de algumas soluções do STF precisa ser dada pela própria sociedade (e o aprendizado e as expressões aqui referidas são fruto da permanente interlocução com ALEXANDRE MORAIS DA ROSA[1]).
Alguém precisa “transcender” as portas e as “pedras” nos julgamentos do STF....(e aqui no “simbólico” talvez a melhor imagem dedutiva seja “Stonhendge”).
Nesse contexto, é de se perguntar como e quem pode consertar a chaminé da “usina jurisprudencial” do STF em um Poder Judiciário cuja cúpula está mais preocupada e “comprometida” (quando não intencionalmente alienada) com a fria e estatística observância de metas quantitativas e de rasteira “eficiência” em detrimento da interpretação e da melhor hermenêutica, de qualidade nos julgamentos? Isso, porém, já é assunto para outra e separada conversa... Para desespero nosso (e certamente do saudoso e genial DRUMMOND), existem outras muitas “pedras” no meio do caminho da Justiça, da interpretação e da hermenêutica, infelizmente...
[1] Vide Decisão Penal: bricolage de significantes. Capítulo 8, especialmente parágrafos sete e oito.

sábado, 15 de agosto de 2009

O “funk” como produto cultural capaz de produzir identidade, controle social e celebração para a efervescência do coletivo: uma ameaça ao capital?


"Com relação a todo tipo de festividade, a posição anti-individualista é tão comum que, num primeiro momento, o baile funk pode se tornar um ritual bastante óbvio (...) o funk carioca seria um bom motivo para questionarmos a ideia de um princípio de individuação dominante nas sociedades complexas (...) é óbvio que sendo puro gasto de energia, a festa pode contrariar o espírito do capitalismo” Hermano Vianna


Estigmatizado e marginalizado cotidianamente como gênero musical de apologia à criminalidade e culto desmedido à pornografia, o verdadeiro movimento "funk" constitui legítima expressão cultural-popular de qualidades e possibilidades muito superiores à visão preconceituosa explorada exaustivamente pela grande mídia.


Ao contrário do que se propaga, o funk responsável promovido em muitas comunidades populares e suburbanas tem na crítica social e política a sua mais forte raiz, merecendo reconhecimento e visibilidade como produto cultural brasileiro que precisa de apoio, divulgação e, sobretudo, respeito.


Pensar o funk pela embaçada lente do que é literalmente vendido pela grande imprensa, mormente em hilários tempos de disputa de "igrejas" no ambicioso mercado na comunicação (Globo X Record), é algo que definitivamente só interessa aos inimigos dos direito à expressão, lazer e cultura popular: todos direitos humanos fundamentais.


Discriminar o funk pelos “proibidões”, estes sim espaços corrompidos, usurpados e tolerantes com a violência e a criminalidade, inclusive no campo sexual e de gênero, também não é algo que se conceba como atitude aceitável. Reduzir o funk ao crime é fazer generalização indevida, punir muitos pelos desvios de poucos, negar direito a expressão cultural, tolher mecanismo de estímulo à consciência crítica, arbitrariedade que só interessa a quem desejar manter tudo exatamente como está, permanecendo devidamente diluídas as identidades...


Por outro lado, mesmo no funk que excede o campo social para o tema monolítico da excessiva e banalizante pornografia, é absolutamente supérfluo falar em ofensa à “moralidade” em tempos cruéis de falta (e incompreensão) de mínima "ética" de parte de muitas “autoridades constituídas”, estejam suas "cabeças" no Senado ou mesmo na Presidência do Supremo Tribunal Federal. Falar em pornografia no funk quando a publicidade brasileira e os meios de comunicação são seus maiores patrocinadores, também não deixa de ser um grande e paradoxal contra-senso.


Relação com a criminalidade, com a violência, com tráfico de drogas são expressões doentias difusas na sociedade contemporânea em todos os seus segmentos, ora com origem no Estado, ora com origem (e patrocínio) nas classes ditas mais abastadas, algo, portanto, muito distante de ser privilégio de um determinado gênero musical...


Nesse contexto, uma pena pensar que justamente o Rio de Janeiro, terra natal do funk tupiniquim, na sua temporária compulsão paranóica por mais “choques de ordem” e enfrentamentos patrocinados pelos governantes de plantão, permita a vigência da Lei Estadual n. 5.265/08, de autoria de ninguém mais ninguém menos do que o ex-Chefe da Polícia Civil fluminense, ex-Deputado Estadual, Álvaro Lins (PMDB/RJ), parlamentar cassado e acusado de envolvimento com atividades e instâncias criminosas. Consultar este específico registro parlamentar é presenciar desmedidas e irrazoáveis exigências para autorizar um baile funk (tratamento acústico, câmeras, antecedência mínima de 30 dias, etc), prova (nada simbólica) de como a seletividade e o etiquetamento podem migrar do crime para a música...Curioso mesmo é imaginar que as festas populares dos morros possam ser cerceadas quando não praticamente impedidas por requisitos desproporcionais que muitas baladas da Zona Sul carioca não conseguiriam atender.


Em plena democracia, certamente há quem queira manter o funk como produto marginal dissociado da legalidade, tipo musical exótico preso ao cotidiano supostamente frívolo e trivial dos (e para os) pobres, especialmente quando já se denuncia que muitos empresários-Djs-produtores têm lucrado e feito a sua verdadeira e particular festa com a exploração do talento alheio, tudo à revelia e indiferença da mesma indústria fonográfica que, claro, faz ouvidos moucos para esta verdadeira e nociva prática de “pirataria”, mais uma obra da cegueira (Saramago) que fica no campo do invisível.

Por mais que a Constituição da República (artigo 215), diga que o Estado deve garantir a todos o acesso a fontes de cultura e o pleno exercício dos direitos dela decorrentes, a real negativa do comando constitucional folha de papel (Lassale) se faz não só pelo orçamento inexpressivo dedicado aos pequenos projetos sociais da área, como, também, pelo preconceito e por uma visão equivocadamente estereotipada. Promover cultura popular no Brasil é, como ensina Humberto Gessinger, lutar na terra de gigantes, onde ainda se trocam vidas por diamantes, onde a liberdade continua sendo nada mais do que uma banda, numa propaganda de refrigerantes (ou quem sabe de telefonia celular...). Para fugir do tom, ficamos à espera das revoltas e das conquistas da juventude (que, vale dizer, precisam ir muito além, aliás, de um movimeto simples, arquitetado, descafeinado (Baudrillard), quase artificial "Fora Sarney", especialmente quando sabemos que o problema e a rede de "interesses" exige que se vá muito mais longe).


Sendo assim, não se há de ter dúvida que qualquer ritmo ou gênero musical capaz de questionar a (des) ordem estabelecida é passível de ser francamente excluído das rádios, das leis, das festas, dos bailes, quando não do acesso popular...que o diga o funk carioca de hoje...(que o diga o rap que denuncia a barbárie do sistema de execução penal, máquina de desigualdades).


Assim, antes da utilização indevida do aparato repressor policial para cercear cultura, apostar no funk pode ser o caminho para maior emancipação política, quando não palco de luta por maior cidadania e dignidade para as comunidades. Como bem diz acertadamente o parlamentar carioca Marcelo Freixo (PSOL/RJ), Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), o que torna uma sociedade mais segura é a capacidade que a sociedade tem de garantir uma cultura de direitos.

Afinal, é de se perguntar, que tanto medo os políticos, a elite e os governantes tem com a força cultural e do funk como instrumento artístico e musical de luta e engajamento por maior Justiça Social? Será que a Polícia de hoje serve de cera aos ouvidos para que todos fujam do encanto das sereias? (Homero-Ilíada)?

Quem sabe a roda de funk, com todas as mutações sofridas dos anos 80 até hoje, não possa ser um espaço para resgatar a crítica social, a boa Política que permita crer na democracia substancial, que viabilize a cobrança legítima e a disposição para a fiscalização que tanto tem faltado à sociedade brasileira...

Quem quiser conferir e ter acesso a uma visão plural, livre e democrática do funk, recomendo uma visita na APAFUNK - Associação dos Profissionais e Amigos do Funk: http://apafunk.blogspot.com/.

Conhecer a rica visão de Hermano Paes Vianna Junior no seu excepcional estudo sobre o baile e o mundo Funk Carioca também vale a pena. Quem quiser ir mais longe, como sugere o próprio Hermano na abertura do seu livro, pode começar a compreender o funk como “festa” na descrição de Durkheim, combinado de aproximação de distâncias, transgressões sociais e efervescência coletiva. Depois disso, que tal continuar a diversão da pesquisa encontrando a filosofia crítica de Nietzsche, que sempre alertou para o perigo de um dia sem dança, de uma vida sem música, do risco de uma verdade enunciada desacompanhada de uma boa risada? Para quem ainda desejar ampliar as conexões, quem sabe Marcuse não possa ajudar para mostrar que, a contrario sensu, a “indústria cultural” do funk vai longe da homogeneização reinante, podendo ser um estímulo para demonstrar o poder das massas, a força do coletivo...?


Se tiver de haver polêmica sobre o funk como produto cultural, que esta passe longe da abusiva intervenção policial, do contrário, goste-se ou não, qualquer semelhança com a ditadura e a MPB não será simples e mera coincidência...Se o funk servir para não deixar ninguém parado na luta subversiva por maior igualdade social, na construção da crítica sociopolítica, já está mais do que na hora de começarmos a apoiar o batidão...(ter o que reinvidicar é tudo o que não falta ao povo brasileiro; talvez já tenha passado a hora de entramos no ritmo).


Por essas e outras que muitos que querem calar o funk são seguidores, quando não descendentes, daqueles que lutavam contra o batuque que vinha da senzala (Adriana Facina), os mesmos que, poucos anos atrás, ainda usavam a farda e o medo para combater a democracia repensada a partir de uma noção mais holística, menos doentiamente egoísta...


Foram quase quatro séculos de escravidão, mais de duas décadas de ditadura, e ainda estamos em busca de liberdade para ser, pensar e ouvir, enfim, sair do individual para o coletivo, contemplar nova "lua" de oportunidades...


E quem insistir em não deixar o funk tocar... que se toque!

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Polícia brasileira que Mata: a “pedrada” que vem de dentro...




“Eu sou o pai do menino que vocês mataram”
Carlos Alberto Arnaldi, pai de Henrique Arnaldi, vítima da violência policial em Piracicaba-SP em outubro de 2008



Os níveis de violência policial no Brasil atingem índices alarmantes e, desde há muito, já deveriam ter chegado ao patamar da indignação, intolerância, quando não de verdadeiro e caótico estado de insuportabilidade. Em solo tupiniquim, toda vez que a narcodemocracia e o simbólico e irracional combate às drogas e armas obriga os organismos policiais à truculência inútil do “enfrentamento”, ocorra ele na verticalização geográfica dos morros ou mesmo na horizontalidade das outras cidades, a expectativa de morte de inocentes, duplamente vitimizados pela pobreza e omissão do Estado, constitui perigo real e iminente.

A militarização da Polícia brasileira e seus esquadrões especiais camufladamente treinados para matar não raras vezes atua na atmosfera da guerra. E nesta “guerra”, fácil perceber que quem perde e se vitimiza é a própria sociedade. Afinal, quem promete criminosamente buscar almas e deixar corpos estendidos no chão, pode merecer tudo (de filme premiado a modelo para uma assustada elite higienista), menos expressão e reconhecimento de um Estado Democrático de Direito, especialmente para um país que já presenciou tantas atrocidades praticadas pelos organismos policiais cooptados e desumanizados sob comando perverso da maldita Ditadura Militar. Aliás, tristes nações aquelas que não aprendem com as páginas escuras da sua história (Carandiru, Candelária, Eldorado dos Carajás, Complexo do Alemão...).

A estatística mostra que a letalidade da Polícia brasileira é inversamente proporcional à sua eficiência na prevenção e apuração de crimes, ao investimento humano na formação e valorização dos policiais, e, sobretudo, à efetivação de políticas públicas capazes de evitar alastramento da própria criminalidade. Apenas no Estado de São Paulo, entre 2007 e alguns meses de 2008, nada menos que 673 pessoas foram mortas em suposto “confronto” com a Polícia, quase um morto por dia. Absurdo, especialmente se pensarmos que na França, em todo ano de 2008, houve duas mortes em situação similar (apesar do Sarkozy).

Nesse morticínio todo, admitir idolatria de esquadrões policiais como o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) é ignorar premissa básica e simples: o agente policial quando representa o Estado não pode agir de outra forma que não mediante restrito e integral respeito à legalidade. Admitir violência, corrupção de valores, tortura e excesso policial é abrir espaço para que a barbárie se estabeleça. Polícia de elite? Só se for para vigiar e reprimir a própria elite e seus "crimes de colarinho branco", para os quais ninguém fala ou exige “tolerância zero”, nem mesmo a própria classe média que cotidianamente clama por mais segurança e a própria mídia que é a primeira a propalar e disseminar este tipo de sensação.

No contexto do problema, além de maior rigor e fiscalização na qualidade dos orçamentos públicos, na aplicação dos recursos dele derivados, muito antes da beligerância (e da ignorância), há de se trilhar o caminho da promoção do Estado Social, único instrumento capaz de prover condições mínimas de existência digna a todos, além, claro, da formulação e execução de políticas públicas eficientes e adequadas, especialmente no âmbito da segurança pública (direito de todos e dever do Estado, nos termos do artigo 144 da CR).

Repressão, combate e cânticos que semeiam ódio e destruição são painéis que devem ficar longe da oficialidade estatal e perto, muito perto do controle, da fiscalização e do monitoramento a ser feito pelo Ministério Público brasileiro, instituição encarregada de defender a sociedade e, em seu nome, exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, da Constituição da República).

Jovem inocente da periferia morrendo na mão da Polícia em suposto ato de “resistência” é o que não mais podemos tolerar. Não por acaso, recentemente, em julho deste ano de 2009, 30 (trinta) policiais militares foram denunciados por cometimento de crimes dolosos contra a vida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, mesmo local onde a ONU apontou a Polícia como responsável por 18% dos homicídios ocorridos no ano de 2007, média que chega a três mortos por dia. Não esqueçamos que a “operação” desenvolvida no Complexo do Alemão em junho de 2007 resultou na morte de 19 pessoas e quase uma dezena de feridos: massacre digno de um mini-campo de concentração moderno onde a suástica nazista cede lugar a uma “orgulhosa” e venerada figura de caveira.

A Polícia brasileira, Militar (PM) ou Civil (PC - também conhecida tecnicamente como Polícia Judiciária), tenha a função de prevenir, reprimir ou mesmo de investigar crimes, precisa tomar urgentemente o rumo da legalidade democrática, não podendo se constituir numa causa perdida (ZIZEK), embora as vezes tudo assim pareça, especialmente quando, por exemplo, um jovem de periferia perde a vida ao receber múltiplos disparos pelas costas simplesmente por ter ultrapassado uma barreira policial ao dirigir sem habilitação: caso da vítima Henrique, lembrada no pórtico do texto.

Investir na formação técnica, psicológica e humana dos agentes que fazem a operacionalização da segurança pública nas cidades e apostar na compreensão de que direitos humanos são conquistas de todos (inclusive policiais-bandidos, por mais que esses, uma vez julgados e condenados no crime ou improbidade administrativa, mereçam banimento e afastamento das corporações) precisa ser missão e compromisso engajado de um real programação nacional capaz de repensar o caminho da política de segurança pública.

E quem não quiser entender que a Polícia age em nome do Estado, que este, por sua vez, somente atua dentro da mais estrita e absoluta legalidade, melhor não só preparar o “BO” (Boletim de Ocorrência), como ajustar o espírito para enfrentar o duro banco dos réus, quando não a própria submissão à Júri Popular, palco democrático onde dificilmente sobra espaço para a impunidade.

Os dados indicativos de uma polícia verde-amarela fardada “que mata” mostram que a violência e visão que temos dela precisa estar em paralaxe, ou seja, colocada e compreendida a partir de uma mirada em perspectiva. Que o diga a “indústria da segurança” e as abomináveis e incontáveis “milícias”, poder paralelo que, tal como crime organizado, ocupa lacunas deixadas pela própria ineficiência ou desonestidade dos governantes.

De qualquer forma, é mais do que chegada a hora de prevalecer a cidadania e não se continuar permitindo que a polícia sobreponha-se aos limites da Justiça para aplicar “pena de morte”, seja ilegalmente nas cotidianas e covardes “subida” aos morros, seja até mesmo no “abate” (nome bem explicativo para definir que o “inimigo” não é visto de modo muito diferente que um animal) de uma simples aeronave clandestina carregada de “drogas” sobrevoando a Amazônia (ou, a propósito, alguém acha que a Lei 9.614/98 patrocinada na era FHC é constitucional?)

A Constituição brasileira, ao mesmo tempo em que garante a vida (artigo 5º), proíbe a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, conforme artigo 5º, XLVII. Quem sabe a violência policial tenha chegado no ponto crítico no qual infelizmente está porque, para muitos, a guerra já foi e está de fato “declarada”. Enfim, tudo pode ser uma questão de conceito (mais uma vez estamos no campo da linguagem). Que o digam alguns governantes e Secretários de Segurança, sempre ávidos por mais um holofote "eleitoreiro", mais uma manchete de jornal, personagens caricatos não raras vezes mais preocupados em maquiar a "fria" e desfavorável estatística com explicações prontas e mirabolantes do que efetivamente comprometidos em estabelecer foco crítico capaz de impedir a morte de novas vítimas.




Por trás de suas ações "espetaculosas", ternos, palavras de "ordem" e canetadas, mais do que reforço ao empoderamento, controle e participação popular na Conferência Nacional de Segurança Pública para construção de verdadeira e permanente política de segurança pública de Estado (não de governo), por vezes o que se tem é o próprio Estado refém da "representatividade" que determina e planeja agir sem rever métodos, mesmo sabendo e correndo o risco assumido de continuar empilhando e embalando as vítimas da sua própria tragédia.

Que possamos, na esteira da intelectualidade de ZIZEK (sempre ele), encontrar um significante-mestre (point de capiton) capaz de romper o estado de acomodação e a ausência de “choque” que, até aqui, tem amortecido a reação e entorpecido o poder de resistência (ou tolerância) da sociedade brasileira no tocante à violência praticada por agentes policiais. Construir cidadania e defender direitos humanos, não esqueçamos, também é combater violência.

Afinal de contas, na sempre lembrada vidraça da lei e ordem e suas “janelas quebradas”, a pior pedrada é justamente aquela que vem de dentro...

domingo, 26 de julho de 2009

Engajamento em tempos de crise: quem nos "salva"?


O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fazem de nós. Jean-Paul Sartre


Poucos são os que se dedicam a agir de modo livre sobre problemas concretos da existência nos sombrios tempos pós-modernos, cada vez mais escassos para a reflexão, transformações e verdadeiras mudanças.
Nesse contexto, reclamar um novo projeto coletivo para se “viver junto” ainda parece algo distante, especialmente quando o consumo oprime, quando o regime de trabalho capitalista escraviza o "conviver", limita o "agir" e priva de substância o "pensar".

Falta de efetiva participação, ausência de compromisso e engajamento, viciado estado de coisas não pode ser definitivo, constatações capazes de exprimir o falido sistema neoliberal, exterminador de subjetividades e possibilidades de um mundo melhor e mais justo.

Romper zonas de conforto e acomodação, sair do egoísmo para atingir um grau maior de coesão e solidariedade, examinar com olhos críticos os acontecimentos históricos, políticos e sociais do nosso tempo, talvez aí resida parte do grande desafio, receita para tempos de crise, exceção e emergência.

Mais do que nunca, é preciso romper o campo imaginário para atingir ações concretas. A fórmula é velha, sabemos a receita para a prática necessária, mais ainda nos falta matéria-prima e ingredientes...
Lutar por políticas públicas educacionais efetivas que assegurem informação, forjem consciência e permitam concreta atuação: único e irremediável caminho.

Velhas necessidades para novos tempos, surdas promessas vazias para o deleite de governantes "silenciosos", omissos traidores do povo na sua vontade geral.

Existência, liberdade e alteridade, a propósito, eis as três grandes etapas da ideologia sartreana.
Ter consciência de ser-no-mundo, agir livre e criticamente, encontrar espaços e preencher lacunas de uma cidadania ainda vazia: missão para a existência.

Ser responsável pela permanente construção do caminho, da opção permanente na busca da melhor escolha, na procura do sentido à vida sem culpa, com seus riscos, perdas e ganhos: este o sentido da verdadeira liberdade.
Estabelecer relação de respeito e reciprocidade entre eu e o outro: tarefa para alteridade.
A única certeza é que estamos condenados a ser livres por mais que nos tempos atuais pensar nisso ainda pareça rematada utopia.

O processo de “maquinização” e a irrefletida existência parece deixar pouco espaço para crescimento da noção de participação, compromisso e engajamento, qualidades e sentimentos tão caros para que tenhamos uma verdadeira e material democracia capaz de concretizar direitos humanos.

Democracia participativa que, aliás, precisa existir com liberdade para que o espaço seja ocupado de modo legítimo pela sociedade, o “outro” que os governos teimam em não respeitar.

Será que estamos "comprometidos"?

Engajamento em tempos pós-modernos, um conteúdo a se buscar... quem nos “salva”?

sábado, 11 de julho de 2009

“Arte para crianças” (e adolescentes): lição do Estatuto da Criança e Adolescente, de Walter Benjamin e de Evandro Salles


Trata-se do preconceito segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente inventivos para distrai-las. Em seu preconceito, eles não vêem que a terra está cheia de substâncias puras e infalsificáveis capazes de despertar o interesse das crianças” Walter Benjamin

Para se ter acesso a conhecimento, cultura e arte, realmente não deveria existir tempo, preço ou idade. Para atender e fazer observar direitos fundamentais e humanos de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito igualmente não poderiam faltar recursos, consciência e vontade. A realidade e o senso comum, porém, teimam em pensar e fazer diferente.

Apresentar e disponibilizar o mundo da arte ao universo infantil, permitir construção de cidadania e formação de espírito crítico a seres especiais em peculiar condição de crescimento e desenvolvimento sem dúvida contempla os princípios e as premissas da doutrina da proteção integral que os constituintes representantes do povo brasileiro tanto quiseram ver observadas quando da edição da Constituição da República em 1988 e, ano seguinte, na promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente, por mais que isso por vezes pareça uma grande e fantástica quimera.

Pois bem, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) está prestes a completar 19 anos de aniversário no próximo dia 13 de julho e, infelizmente, muitas de suas premissas ainda são promessas e vazias retóricas, dentre as quais acesso ao conhecimento, lazer e cultura, dentro ou fora do ambiente escolar, inclusive no específico campo da arte.

Os motivos são muitos e abrangem certamente a falta quantitativa e qualitativa de políticas públicas eficientes, especialmente porque o orçamento voltado exclusivamente para criança e adolescente dos Municípios, Estados e da União, de forma mais aguda ainda no campo da cultura, ainda está muito distante de cumprir com os comandos constitucionais da prioridade absoluta (artigo 227 da CR) e destinação privilegiada e preferencial de recursos públicos (artigo 4º do ECA), inclusive para garantir acesso e conhecimento num elo fundamental: criança, juventude e arte.

Sendo assim, ideal seria se a sociedade política e civil direcionasse esforços para aproximar o universo e a linguagem da arte a crianças e adolescentes, pois, quem sabe assim a pátria do futuro poderá sonhar e acordar num mundo mais próspero e pleno de verdadeira e emancipadora cidadania, sentimento último que não pode ficar associado à criança e adolescente apenas uma vez por ano, quando da divulgação de determinado e específico programa “global”, "lembrado" talvez para esclarecer o grande "esquecimento" do tema nos outros 364 dias, especialmente quando as finalidades informativas, educativas, culturais e sobretudo artísticas dos meios de comunicação não rompem a tinta do artigo 221 da Constituição da República.

Dentre tantas carências materiais e intelectuais de um país que ainda busca um verdadeiro projeto, um dos novos caminhos civilizatórios pode passar pelo atrelamento da criança e adolescente a uma das maiores expressões de cultura a ser usufruída pela humanidade: a arte.

Sobram motivos para que assim se entenda. Primeiro, porque arte é não só uma forma de compreensão da história do passado, presente e futuro do mundo, como, sobretudo, liberdade e possibilidade de protagonismo, de opinião e expressão (artigo 16, II, do ECA), especialmente para os sujeitos de direito que já tiverem habilitados a participarem da vida política do país, que tanto precisa de novas caras, siglas, signos, símbolos e energias (artigo 16, VI, do ECA). Segundo, porque se o conceito de saúde contempla o bem-estar em todas as formas, e se crianças e adolescentes têm direito de proteção nesse aspecto (artigo 7º do ECA), ingressar no caleidoscópio das possibilidades do rico universo artístico é abrir portas e janelas para o mundo, comunicar e bricolar novos significantes e significados no caminho e no novelo da linguagem, como bem ensina Alexandre Morais da Rosa, ainda que falando de outro assunto. Terceiro, porque garantir acesso e participação da criança e jovem em atividades artísticas é assegurar educação que permita pleno desenvolvimento da pessoa, prepará-la para exercício da cidadania e, quem sabe, para o próprio trabalho, como bem diz o artigo 53 do mesmo ECA. Quarto, porque garantir acesso à arte é permitir e concretizar direito à informação, cultura e lazer assegurado pelo artigo 71 do mesmo ECA. Some-se isso tudo à idéia e previsão expressa de que as crianças e adolescentes devem dispor dos mesmos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (artigo 3º do ECA) e será difícil encontrar resposta para: 1) o fato dos equipamentos públicos (ex: museus, parques, etc), de modo geral, não guardarem a devida atenção para a importância da arte no desenvolvimento e educação infanto-juvenil; 2) o currículo escolar e profissional, da educação infantil ao ensino superior, não estar atento à necessidade de maior valorização da arte na sua articulação com a educação e as políticas públicas; 3) a constatação de que a iniciativa privada, o terceiro setor e as organizações não-governamentais, enfim, a sociedade em geral, não estão atentos e verdadeiramente despertos para valorizar a importância e a verdadeira "revolução" que pode ser para uma criança e adolescente acessar, experimentar, vivenciar e mesmo produzir arte sob todas as suas múltiplas formas e infinitos conteúdos.

Que logo isso tudo possa mudar e que o Estatuto da Criança e Adolescente, que já passou um ano da sua maioridade, possa ganhar cores mais vivas no direito achado (e encontrado) na rua, como quer Boaventura Santos, pois só assim esta preciosa legislação será conhecida, compreendida e respeitada pela sociedade e, sobretudo, pela hoje desacreditada classe política. A otimização da efetividade do Estatuto enquanto lei certamente contribuirá para reforçar a importância, o patrimônio e o legado extraordinário da experiência artística na formação pedagógica, no acesso ao conhecimento e na incessante busca de maior participação cívica- cidadã e pensamento crítico de parte de nossas crianças e adolescentes.

Nesse contexto, oportuno homenagear Evandro Salles, sua equipe e os mentores do maravilhoso Projeto “Arte para Crianças” que, sem pretensão de "infantilizar" a arte, não raras vezes vista como mercadoria de poucos privilegiados, percorreu algumas capitais brasileiras (São Luis, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo...) enfatizando importância da partipação, do protagonismo e da valorização e contribuição linguística e auto-explicativa da arte para o universo desta pequena gente-sujeito que, por incrível que pareça, nas palavras do próprio artista, constitui um público hoje quase totalmente impedido de assim proceder no seu âmbito. Ou seja, na restrição quando não impossibilidade do desfrute da arte pela criança e jovem, encontramos mais uma moratória infanto-juvenil perdida no baú das possibilidades.

Que os tempos possam mudar e que venha a necessária conscientização para que as famílias, as escolas, os museus e os mais variados espaços públicos e privados saibam valorizar e entender que através da arte com crianças (e adolescentes) é possível construir um novo e melhor futuro, uma verdadeira língua própria que muito contribuirá para o crescimento e desenvolvimento sadio e digno de nossas crianças e adolescentes, da sociedade do futuro.

A propósito, como bem ensina o artista suíço Paul Klee, segundo o qual a arte não reproduz o visível, mas torna visível, tendo em vista que a arte não serve para copiar as coisas que já existem, mas para criar as que ainda não existem, lembrado pelo talentoso Evandro Salles, talvez por isso que certamente muitos políticos, governantes e empresários deste país (que está longe de ser realmente de todos no acesso à cultura) ainda não querem investir ou mesmo acreditar na arte para (e com) crianças e adolescentes, horizonte que precisa urgentemente mudar, no concreto e no imaginário.

Afinal, nada melhor ou mais animador para embalar a esperança (e o sonho) de um mundo melhor e mais justo do que a combinação de uma criança e um adolescente fundidos na visão, no olhar, na escuta, na fala ou no silêncio de uma obra de arte...para pensar, criar e, sobretudo, transformar, ação última do Estado Democrático de Direito idealizado pela Constituição que não pode ficar para sempre adormecida.

E para quem, a estas alturas, ainda achar que arte é assunto de adulto, que criança e adolescentes ainda são tão objetos como uma simples e para muitos "incompreensível" obra de arte moderna ou pós-moderna, nada melhor que voltar a lembrar o valoroso Evandro Salles: A dimensão da arte é atemporal e sem gêneros. Como no que diz respeito às faculdades de pensar, ver ou falar, na arte não existem distinções dessa ordem. Todo ser humano indistintamente detém tais faculdades, e seu acesso a elas é irrestrito, desde que estejam asseguradas suas condições de desenvolvimento. Para que alguém viva a experiência da arte, basta que tenha um contato adequado e direto com os objetos que a engendram.
Parabéns ao Estatuto da Criança e Adolescente, na expectativa de que este constitua-se cada vez mais num instrumento de aquisição de direitos, de respeito à participação e protagonismo de crianças e adolescentes, tão ricas de alegria, mistérios, curiosidade, significados e significantes, territórios desconhecidos (Warat), verdadeiras obras de arte...

sábado, 4 de julho de 2009

Negativa oficial de voto ao preso provisório na ótica do TRE-SP: "conversa de clube" ou simples violação do art. 15, III, da Constituição?


“Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão?” Eduardo Galeano (Espelhos)

Não bastasse o seu campo não raras vezes simbólico e imaginário, forçoso constatar que fração da Justiça Eleitoral brasileira, por conta de resultado de julgamento realizado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), no último 16 de junho de 2009, perde mais uma significativa e franca possibilidade de ganhar um pouco mais de credibilidade e afirmação social em prol da concretização de direitos humanos fundamentais.

Após elogiável representação formulada pelo diligente representante do Ministério Público Eleitoral, na pessoa do Procurador Regional Eleitoral oficiante junto à referida Corte Eleitoral paulista, basta perceber o teor e a fundamentação das decisões e votos “vencedores” para constatar como é fácil no sistema jurídico brasileiro negar direito fundamental e derrotar a Constituição e a substancial democracia por trás da “burocracia” e, pior de tudo, do “preconceito” e “higiene” de classe.

Com uma linha de argumentação absolutamente reacionária e absurdamente preconceituosa, de baixíssima densidade jurídica e social, o referido Tribunal Eleitoral, por maioria, entendeu por bem em oficializar, mais uma vez, a negativa de um direito expresso, líquido e certo garantido pela Constituição da República de 1988 que, ao suspender direitos políticos do preso com condenação transitada em julgado (em relação a qual não cabe mais recurso), obviamente assegurou e contemplou tal direito fundamental de cidadania ativa aos presos provisórios. A despeito disso, sempre bom lembrar que segundo o artigo 15 da Constituição da República, somado ao seu inciso III, é vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de (...) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”.

Difícil imaginar que uma macroestrutura excessivamente onerosa como a Justiça Eleitoral, de trabalho periódico e praticamente bianual (Eleições a cada dois anos) e com volume de atividades infinitamente inferior ao destinado cotidiana e permanentemente aos demais ramos do Judiciário (onde muitas vezes falta mínima estrutura para garantir acesso qualitativo e célere ao desejo de Justiça), ao invés de se preocupar em maximizar meios de disponibilizar sua estrutura à serviço da democracia (incluída a disponibilização de equipamentos para eleições não-oficiais como de Conselheiros Tutelares), prefira o “conforto” e a “comodidade” da estagnação pífia que, ao negar direito humano fundamental de voto do preso provisório, ao violar garantia de cidadania e capacidade eleitoral ativa prevista pela Constituição, contribui para distanciar e desacreditar o Judiciário perante a sociedade, fato já constatado em diversas e recentes pesquisas de opinião.

Ouvir o áudio da sessão de julgamento do TRE sobre o tema em questão serve para evidenciar e demonstrar como pode ser preocupantemente baixo o senso e sentimento de constitucionalidade a julgar pela natureza e qualidade dos argumentos por vezes invocados pelo Judiciário brasileiro. Escutar o teor do julgamento em questão é a prova preocupante pronta e acabada de que não raras vezes argumentos reacionários e absolutamente menores servem de justificativa oficial à negação de um direito fundamental, o que muitas vezes não é objeto de conhecimento da sociedade ou divulgação da grande mídia.

Elogio mesmo merecem o Procurador Regional Eleitoral que propôs a medida e o único e solitário Juiz Eleitoral que, no enfrentamento do tema, entendeu e preferiu determinar o cumprimento da Constituição em lugar de apresentar supostas dificuldades operacionais para efetivação de uma medida cuja falta de implementação, por si só, considerando o tempo decorrido (passados mais de 20 anos da Constituição e muitas Eleições), já deveria ser motivo da mais absoluta vergonha.

A infeliz incapacidade de transformar a Constituição em realidade materializada pelo julgamento do TRE-SP é cotidianamente vivenciada num Judiciário brasileiro que, por vezes, parece viver intensa crise de funcionalidade, que inclui tanto necessidade de reflexão sobre a seleção e formação dos seus magistrados (incluidas as Cortes Eleitorais), como também sugere necessidade de se discutir o reduzido grau de efetividade e celeridade no processamento das tutelas coletivas, Poder Judiciário nacional que, por vezes, parece incapaz de desempenhar um simples e fundamental papel: observar e fazer cumprir a Constituição (tarefa que deve valer apenas para o Executivo e Legislativo, mas também precisa vincular a próprio Judiciário enquanto poder do Estado Democrático de Direito).

Pior de tudo é ter de ouvir magistrado eleitoral justificando a impossibilidade prática da medida de se assegurar voto aos presos provisórios sob o argumento da existência de uma “série de coisas constitucionais que não se aplicam”, como consta do próprio precedente. Igualmente preocupante é escutar sustentação de que a discussão em pauta a partir da representação feita revelaria “colidência de direitos”, pois no artigo 15, III, da Constituição haveria um direito que não seria exeqüível na sua totalidade em virtude do direito de segurança da sociedade que, no caso, supostamente impediria a possibilidade de exercício do voto ao preso provisório.

Duro de ouvir argumento de autoridade de que assim se faz ou assim se vota com a pseudo e implícita experiência e sabedoria de quem acompanha eleição “desde o tempo das cédulas”, quando talvez melhor e mais verdadeiro fosse reconhecer adormecimento de consciência no passado anterior à própria Constituição de 1988, no que se inclui a dívida histórica de quase quatro séculos de escravidão e aproximadamente vinte cinco anos de Ditadura Militar.

Terrível, ainda, ouvir Juiz Eleitoral justificar seu posicionamento de vedação de voto ao preso provisório sob argumento de que esta situação cumulada com a parcial obrigatoriedade do voto seria uma espécie de incentivo ao "voto de protesto", raciocínio que, segundo confessado pelo próprio magistrado, teria sido extraído de uma consulta que este afirmou certa vez ter feito com pessoas do seu mesmo nível social, curiosamente feita em um clube (quem sabe de tênis ou golfe, desses esportes mesmo que só a elite costumeiramente pratica). Segundo o mesmo Juiz, na sua aparente “cegueira” (ou seria "treva branca"?) interpretativa, não haveria sequer garantia e direito fundamental ao preso provisório votar, pois isso não estaria expresso na Constituição.

Complicado, ainda por cima, ter de ouvir questionamentos do tipo “em quem o preso vai votar?”, preocupação que, se vale para o sujeito privado da liberdade, pode ser estendida à sociedade brasileira como um todo, risco inerente à própria democracia que, obviamente, não pode ser invocado apenas para determinada categoria de pessoas hipossuficientes e em situação de vulnerabilidade. Afinal de contas, não é preciso muita perspicácia e luz para perceber que a mesma ideal restrição de “liberdade” eleitoral incide não apenas para o preso, como também invade potencialmente todos os rincões e bolsões de pobreza e miserabilidade do nosso país, onde a influência, a cooptação e a captação ilícita do sufrágio ainda ocorrem nas barbas e nos olhos da, por vezes literalmente "cega" (ou seria simplesmente daltônica?), Justiça Eleitoral, a quem ainda falta ideal estrutura de organização, fiscalização e efetividade para fazer valer a democracia substancial.

Verdadeiramente abominável ouvir o áudio da sessão e perceber que determinado Juiz, talvez para suprir o seu excessivo esvaziamento ou despreparo técnico-jurídico para discussão constitucional do tema, tenha preferido destilar veneno ironizando o Estado do Rio Grande do Sul, espaço no qual já houve experiência positiva para o voto dos presos provisórios, magistrado esse que, aliás, demonstra curiosa e profunda ignorância com o direito alternativo e, inclusive, com a própria hermenêutica.
Talvez para o referido julgador interpretar a lei como se quer ou, em suas palavras, contornar a lei, somente deva ser uma opção legítima e válida para negar a Constituição, nada mais. Segundo este mesmo Juiz eleitoral, garantir a concretização de direito fundamental aos presos provisórios seria o mesmo que “dar direito aos piores”, o que realmente encerra a possibilidade de se continuar querendo fazer qualquer compreensão mais democrática e imparcial do seu relato, afinal, o próprio magistrado, em seu voto, em certo momento reconheceu estar vendo caso pelo conceito (ou seria pré-conceito?).

De outro lado, alegar que “preso não votaria bem”, justamente por não dispor de acesso à informação e propaganda eleitoral, soa como uma cínica ironia, não só porque aos analfabetos é assegurado a facultatividade do voto, como bem apontado pelo valoroso julgador vencido na oportunidade, mas também considerando (e aqui o fundamento é nosso), que a Corte Eleitoral em questão está situada justamente no Estado da Federação que exemplificativamente elegeu os “polêmicos” Paulo Maluf e o falecido e exótico estilista Clodovil para a Câmara Federal dos Deputados.
Talvez seja justamente pelo fato de o direito de voto do preso provisório estar esquecido numa verdadeira "arca perdida", que a execução e os estabelecimentos penais brasileiros são a verdadeira expressão da barbárie, estado de exceção (AGAMBEN) permanente que nega cumprimento à Constituição, solidifica a ausência do Estado e, aí sim, permite o nocivo desenvolvimento de organizações criminosas sob a “roupagem” de partido voltado aos interesses da massa e comunidade carcerária.

Difícil acreditar que haveria “enorme dificuldade para fazer presos provisórios votarem” nas Eleições de 2010, especialmente para um Judiciário brasileiro que já teve, no seu quadro, juízes como a saudosa Professora Cleusa Mariza Silveira de Azevedo, que durante todo seu tempo de vida, na jurisdição, na sala de aula e em diversos eventos de execução penal, sempre foi uma briosa e corajosa defensora do direito de voto e protagonismo aos presos provisórios que, talvez para desespero de muitos, pela Constituição, tiveram sim assegurada sua capacidade eleitoral ativa, o que também, no caso concreto, foi acertado e elogiável entendimento do Procurador Regional Eleitoral Luiz Carlos dos Santos Gonçalves e do Juiz Eleitoral Walter de Almeida Guilherme.

A única enorme e insuperável dificuldade, no caso, parece ser que o Tribunal Regional Eleitoral (e outros que eventualmente possam comungar do mesmo entendimento) respeitem a Constituição e a façam cumprir deixando de lado argumentos absolutamente reacionários e preconceituosos. Tem-se no caso do TRE-SP mais um lamentável precedente que coloca óbices operacionais à frente da Lei Maior, situação que somente pode encontrar alguma "explicação" na interdisciplinaridade circular de outros campos do conhecimento, quem sabe filosofia, sociologia e psicologia.

Quem quiser conferir que o referido julgamento que, embora não pareça, constitui fato lamentavelmente verídico, fique à vontade (ou não) para acessar o áudio da sessão (http://s.conjur.com.br/dl/julgamento-tre-sp-di.mp3 ou mesmo verificar um dos votos “vencedores” (http://s.conjur.com.br/dl/voto-baptista-pereir.pdf), tudo para que, desse histórico, cada leitor extraia suas próprias conclusões e recortes críticos. Afinal, este breve ensaio não passa da fantasia de se tentar exercitar a lição deixada por Saramago, a responsabilidade de ver, nada impedindo que, democraticamente, alguém possa, como sugerido por um dos Juízes do caso, preferir conversar sobre o tema, de preferência, claro, apenas “com pessoas do nosso nível, não jurídico, mas nosso nível social, num ambiente social, evidentemente, num clube (...)”.