domingo, 27 de março de 2011

A decisão do Supremo no caso da Lei do Ficha Limpa e o vitalismo jurídico de EUGEN EHRLICH: reflexões.



"querer aprisionar o direito de uma época ou de um povo nos parágrafos de um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude: o que entra não é mais correnteza viva, mas água morta e muita coisa simplesmente não entra"(EHRLICH)

  1. O quê é o “processo eleitoral” e quando ele propriamente começa? A sua concepção deve ser formal ou material? E qual a relação entre a regra da anterioridade/anualidade e o seu começo? Entre preservar direito fundamental político passivo e a o próprio sentido da democracia, o que vale mais? Basta que haja mudança nas regras do jogo antes das convenções e registros de candidatura para que não se tenha por violado o preceito? Ou será necessário respeitar, sempre, um ano antes do processo político em si para evitar mudanças e alterações legais de afogadilho, as quais nem sempre podem estar com bons propósitos? Estamos em caso de definição de critérios de elegibilidade/inelegibilidade e qual a repercussão disso? Essas alguns dos questionamentos e reflexões que podem ser feitos a partir do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 633703 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na última semana, expediente no qual, por diferença de um voto, num apertadíssimo 6x5, com voto de desempate do recém empossado Ministro Fux, determinou-se a não aplicação da Lei do Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010 - de 04 de junho de 2010) às Eleições Federais de 2010.
  2. Por mais que a questão jurídica possa ser mesmo controversa à luz da dicção do artigo 16 da Constituição da República (a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência), fato é que “o direito vivo” do mencionado Diploma, para além da mera prescrição jurídica, ao mesmo tempo que mostra sintonia com o clamor social, por outro lado desafia o fato de que deveria caber à própria resposta popular a exclusão do processo eleitoral de pessoas sem mínimas condições de probidade ou com histórico de condenações. A lição aqui, particularmente, aprendi com Alexandre Morais da Rosa.
  3. O “direito vivo” no caso da denominada Lei do Ficha Limpa, visto para além das prescrições, contempla norma jurídica indicativa de que as relações sociais precisam fazer parte do fenômeno de compreensão do direito (EUGEN EHRLICH), fato este que, lamentavelmente, pode dar razão ao Supremo Tribunal Federal, por mais paradoxal que isso pareça numa primeira e superficial análise.
  4. Trata-se de caso complexo a ensejar a reflexão de todos, dado que vai muito longe da crítica midiática de senso comum pautando a decisão do colegiado como absurdo, qualquer que fosse a posição adotada (aliás é de se perguntar qual o espaço do absurdo no direito e no seu critério de interpretação sempre pelo novelo da linguagem). O STF é passivel de muitas críticas, sim, por muitos aspectos, como qualquer instituição, mas não propriamente no nível que vem recebendo nesse caso concreto, até mesmo porque as pessoas precisam entender que direito sempre precisa equilibrar lógica e retórica com controle a partir da fundamentação, o que nem sempre acontece de maneira adequada, o que representa a mais pura verdade.
  5. Por incrível que pareça, o “vitalismo jurídico” de se ir além da dicção legal, no caso concreto, mais atrapalha do que ajuda, simplesmente porque, independentemente da discussão jurídica, o que existe, mais uma vez, é uma macroestrutura e uma atmosfera social imprópria que infelizmente ainda permite que as pessoas se elejam candidatos a cargos eletivos sem as menores condições curriculares, não fosse assim não teríamos Maluf, Collor e outros tantos parlamentares investidos em mandato. Aí reside a raiz do problema.
  6. A mesma vida que produz o fato histórico do povo se mobilizar para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular, tal como ocorreu com a Lei Complementar 135/2010, é a que permite que pessoas sem condições sejam eleitas democraticamente pela soberania popular, sobre o que devemos pensar, afinal ela também está na Constituição, por mais sedutor que seja o “atalho” no caminho.
  7. O Supremo não reconheceu a inconstitucionalidade da Lei em questão, apenas afirmou impossibilidade do Diploma se aplicar às Eleições de 2010. Saber o quanto a mudança propiciada pela Lei Complementar n. 135/2010 em ano de eleição impactou o ambiente das “regras do jogo” do processo eleitoral pode ser interpretação-chave para a questão.
  8. Se a história do direito mostra que a Lei do Ficha Limpa e sua edição decorreu de uma efetiva e louvável mobilização da sociedade brasileira, por óbvio que a escrita da legislação em princípio foi, de fato, emanada no meio de um processo fático em curso, que, verdade seja dita, começa, materialmente, muito antes das convenções...
  9. O problema está na forma de se justificar as coisas, enfim, na linguagem da fundamentação. A frase do Ministro Fux “por melhor que seja o direito, ele não deve se sobrepor à Constituição” ,de outro lado, é de uma falta de técnica terrível, primeiro porque a Constiituição é a ordem de todos os direitos, segundo porque o direito não está apenas na “prescrição jurídica”, mas também na norma social.
  10. Até que ponto o direito (e o ensino jurídico) está empobrecidamente voltado mais para o agir dos Tribunais do que para o agir humano, até que ponto a predominância excessiva da jurisprudência como fonte do direito está aniquilando e enfraquecendo o universo do jurídico na sua realidade com o social, essas são questões provocadas pelo pensamento de um dos principais mentores da sociologia do direito (EUGEN EHRLICH que merecem reflexão;
  11. A despeito disso tudo, a respeito da não aplicação da Lei do Ficha Limpa para as Eleições de 2010, a impressão é que a interpretação sobre restrição de direitos fundamentais devia mesmo ser restritiva, tal como acabou ocorrendo. Motivos existem nesse sentido. Pode-se divergir, é verdade, mas na essência a questão é altamente controversa, prova disso foi o encaminhamento da votação.
  12. Para além do resultado proclamado, creio que o caso propicia reflexão. Quem sabe o segredo não está em se buscar um processo pedagógico para formação e educação política do povo brasileiro, a partir do qual possa apostar mais na coação social para impedir “eleição” de fichas sujas do que propriamente confiar na coação jurídica da Justiça eleitoral excluir candidatos. A solução do problema pode estar nas outras origens do direito, inclusive fora do Estado. A lição pode estar com EUGEN EHRLICH, ainda que dele o STF nada tenha comentado.

domingo, 6 de março de 2011

Ainda, a “crise do capitalismo”: já temos uma nova direção?



“Ci sono momenti, nella vita, che, como segnali di confine, concludono un periodo ormai trascorso, ma al tempo stesso indicano con certezza una nuova direzione”. (MARX)


1. Partindo do princípio de que toda periodização é necessária para organizar o pensamento, a crise do capitalismo e o resgate de ideias keynesianas precisa ser continuamente discutida e atualizada no nosso cada vez mais perverso sistema-mundo. Hora de problematizar algumas questões e de discutir até que ponto se conseguiu avançar e qualificar o debate sobre o tema.


2. Para começo de conversa, poder-se-ia indagar o que efetivamente mudou no mundo nos mais de dois anos passados desde o começo daquela que foi definida como a “pior crise do capitalismo mundial” desde a quebra da bolsa de 1929?


3. Pergunta-se: qual o balanço e o reflexo das medidas de política econômica adotadas pelos dois maiores grupos que fazem girar a economia mundial, verdadeiro G2 composto por “estadunidenses” de um lado e por “europeus” de outro? Quais os consensos e os dissensos das potências separadas pelo Oceano Atlântico? No embate da força do “velho mundo” com os “yankees” quem é que cedeu espaço e quem é que aproveitou do momento para se fortalecer? Ou será que o único benefício vem da periferia?


4. Já existe compreensão de que o modelo vigente desde a pós-guerra (1945) chegou no seu limite? Será que já não existem evidências suficientes de que de nada adianta aumentar a “produção” se não houver preocupação e reflexão quanto a forma de “distribuição” da riqueza? Valor material sem reflexo social não representa absolutamente nada.


5. A propósito, a respeito do papel a ser desempenhado pelo Estado em relação à economia, quais são enfim as teses e as opções disponíveis para jogo?


6. Estamos prontos para simplesmente resgatar a ideia passada do Estado do bem-estar social (Welfare State) ou, ao contrário, a ideia vigente é mais ou menos aquela de que podemos mudar sem cambiarmos absolutamente nada?


7. Houve efetiva conscientização global de que um outro modelo é efetivamente necessário ou já está assentada a ideia simplificadora (e um tanto quanto ignorante) de que o “período de turbulência” passou, já estando tudo de volta ao seu (in) devido lugar?


8. Será que o mundo econômico já despertou para a compreensão de que a sobrevivência do sistema capitalista pode estar na aguda dependência de uma mudança radical das premissas até aqui vigentes? Qual será o motivo para a “cegueira” global incapaz de enxergar que uma das “chaves” para alcançar novo “ponto de mutação (KAPRA) pode estar justamente na re-configuração das relações sociais de trabalho, incluindo política pública específica para atenuar o risco inevitável do desemprego estrutural?


10. Quanto à maldita ciranda financeira do capital especulativo, será que já não se acumulou experiência e sabedoria suficiente para perceber que a virtualização e a volatilidade dos mercados derivada da moeda sem lastro, do paradoxal “enriquecimento sem lucro”, precisa sofrer os influxos de um novo direcionamento? Cadê a esperada regulamentação?


11. Ou mudamos a ideologia (ALTHUSSER) para atravessar o presente com sabedoria adquirida por erros que já custaram caro no passado ou será cada vez mais utópico pensar num futuro capaz de abrigar um “humanismo real” e transcendente, que cada vez mais parece depender de um novo projeto e modelo de sociedade.