domingo, 22 de junho de 2014

A Copa do Mundo de 2014 no Brasil: em busca de um legado possível


Já faz alguns dias que, em meio a greves históricas e tímidas mobilizações sociais que procuram, um tanto quanto desajeitadamente, dar alguma continuidade às épicas jornadas de junho de 2013, começou a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, espetáculo esportivo instalado sob o regime de um verdadeiro estado de exceção no qual uma entidade privada criada em 1904 na Suiça (FIFA – Fédération Internationale de Football Association) age com força de Estado, ainda que sem nenhum tipo de controle.

Tivemos a implementação de um regime diferenciado de licitação, chuva de empréstimos e uso heterodoxo de outros institutos (potencial construtivo) com dinheiro público para reforma e construção de estádios, uma previsão específica de responsabilidade civil da União por qualquer ação ou omissão capaz de causar dano à FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores, restrições comerciais num raio de dois quilômetros, criação de tipos penais esdrúxulos (marketing por emboscada por associação é um deles), prerrogativas de propriedade industrial, prêmios em dinheiro para ex-jogadores campeões, dentre outras teratologias jurídicas chanceladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, por esmagadora maioria (10 Ministros), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4976, entendeu que a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) é constitucional.

As vaias dirigidas à Presidente iniciadas na área VIP do Estádio do Itaquerão em São Paulo, em pleno clima eleitoral - quando, em verdade, não teve instituição ou poder que, de algum modo, organizadamente, tenha se insurgido de forma organizada e concreta quanto aos investimentos públicos para a realização da Copa no Brasil, algo em torno de 25,6 bilhões de reais – definitivamente não merecem aplauso, especialmente porque foram apenas os Comitês Populares da Copa criados em diversas capitais que apresentaram uma crítica tempestiva e qualificada dos problemas decorrentes do megaevento ora celebrado efusivamente pelos meios de comunicação social, os mesmos que esqueceram os escândalos das empreiteiras, o assunto Pasadena, Operação Lava-Jato, fazendo valer sua já reconhecida memória que reproduza apenas o que é mais recente, na latência e  enquanto durar a audiência. Tomemos de exemplo a Folha de São Paulo e algumas de suas manchetes nesses últimos  dias: “Brasil abre a Copa com gol contra, virada e vaia a Dilma” (13/06/2014); “Segurança volta a falhar e 150 invadem o Maracanã” (19/06/2014).

Chegaram as festejadas seleções para o maior evento esportivo do mundo e os estrangeiros, supostamente em torno de seiscentos mil, segundo se diz, espalharam-se de norte a sul ao longo das doze sedes do Mundial (Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília, Natal, Salvador, Manaus, Cuiabá, Recife e Fortaleza) e estariam circulando frenética e efusivamente pelo território brasileiro, ainda tão pouco explorado pelo turismo frente a outros destinos mundiais.

Sobraram críticas para a cerimônia de abertura da Copa. As propagandas saltam por todos os lados divulgando as empresas patrocinadoras, as grandes marcas e os  "craques", mas não parece haver dúvida de que houve falha da “comunicação social” dos governos em tentar mostrar que a Copa, a médio ou longo prazo, poderia trazer de pedagógico, informativo, educativo e produtivo para o desenvolvimento nacional, além do simples produto “futebol”, associado à lazer e festa pela própria expressão da cultura nacional.

Os “protestos”, melhor dizendo, os atos anti-Copa associados ou não a algum tipo de reivindicação legítima, pelo menos do que está sendo divulgado, até mostraram-se aquém do esperado, não conseguindo alcançar o entorno dos jogos, muito menos amplificar a próspera e qualificada pauta que compôs as jornadas de junho de 2013. Dizem que em jogo está a “imagem” do Brasil, será mesmo? Pode ser, talvez para mostrar que o povo apaixonado por futebol não é necessariamente por ele sempre alienado e desinteressado, já que, afinal, as manifestações no espaço público, uma realidade permanente nos países mais politizados do mundo, apenas recentemente estão incorporadas à nossa realidade, sendo ainda uma feliz novidade com a qual não estamos habituados (vale para o Estado e suas instituições, inclusive de segurança pública, vale para a população brasileira, ainda sem entender exatamente o que pode acarretar das vozes das ruas, onde é que isso pode chegar).

Os estádios previstos para o mundial, de maneira geral, estão atendendo ao que se esperava, aliás, nesse sentido a Copa das Confederações realizada pela mesma FIFA em 2013 já era indicativa de que esse não seria o problema. Faltou comida aqui, um hino de duas seleções não tocou ali, uma fila mal orientada acolá, um cambista extorquindo o consumidor ali, mas nada capaz de demonstrar uma desorganização marcante. Isso já era esperado, aliás, sabemos, nós, brasileiros, fazemos futebol o ano todo, ainda que sem segurança, sem isolamento de ruas, sem cerveja nos estádios, sem um bom calendário etc.
  
A média de gols é a mais elevada desde 1958 até o momento da escrita deste texto, com média superior a três gols por jogo, todavia  nem o funcionamento do mundial da bola naquilo que ele possui de essencial, muito menos a qualidade do futebol apresentado pelas seleções, isso nada tem a ver com os motivos que justificaram a crítica da Copa.

O problema é que nossa (i)mobilidade urbana e nossa precária infraestrutura de transportes continuam exatamente as mesmas, assim como nosso sistema de políticas básicas de saúde, educação e assistência social. As cidades, se mudaram para a Copa, foi para se adequarem a um projeto de interesse hoteleiro, do mercado imobiliário, de supressão de equipamentos públicos em nome de interesses financeiros.
 
Complicado é permitir que uma entidade privada, cercada de narrativas e escândalos de corrupção, consiga obter uma política de segurança mais eficiente para o estrangeiro do que o que o Estado assegura de modo permanente ao povo brasileiro, o tal "padrão FIFA ".

Revolta saber que existe helicóptero pronto para conduzir um jogador lesionado a um hospital para um exame de rotina quando os usuários do subfinanciado Sistema Único de Saúde  muitas vezes não tem um devido fluxo de urgência e emergência.

É duro saber que o dinheiro público emprestado ou aplicado em estádios de futebol serviu para elitizá-los e torna-lo mais distante do acesso do povo à cultura e ao lazer, inclusive para os usos alternativos desses espaços futuros (shows musicais, etc).

É inaceitável que o sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) mobilize-se com dezenas de membros para atuar nos aeroportos ou nos estádios quando dezenas de vilas e periferias carecem da justiça mais elementar, quando falta saneamento básico, moradia, vagas na creche para todos, melhor estrutura para a universidade pública brasileira etc.

Pior de tudo é saber que 56% dos brasileiros, segundo pesquisa, estariam com nenhum ou pouco interesse nas Eleições de 2014 e provavelmente com bem mais interesse pelo resultado esportivo do Mundial.

Além do inegável encontro das civilizações pelo esporte, do congraçamento natural e intercultural que cada partida propicia, para além das mensagens politicamente corretas da FIFA- muito mais retóricas do que práticas, a julgar pela maneira como a entidade trata seus assuntos internos, incluindo a provável e poderosa influência do dinheiro nas votações para definição das próximas sedes dos Mundiais (Rússia em 2018 e, por enquanto, Catar em 2022).

A FIFA faz questão de mostrar seu “fair play” no início dos jogos, com frases de efeito, com proposta de erradicação do preconceito, na proposta de um "só" mundo, mas por muitos é tido como verdadeira “máfia”, o que, convenhamos, não é qualificativo dos mais adequados.

Independente do resultado da Copa para a seleção brasileira e sua provável influência no clima eleitoral, talvez fosse o caso de pensar que a entidade que utiliza os símbolos, o hino e a bandeira nacional não devesse ser privada ou, caso assim continue, necessariamente deveria estar sujeita a algum tipo de controle, e bem rigoroso, a julgar pelas cifras financeiras que movimenta, pelo tanto que impacto ou utiliza da estrutura dos recursos públicos.

O "lucro" não pode ser apenas monetário da FIFA (“go home?”), da CBF, dos meios de comunicação, das empresas de publicidade, dos patrocinadores, mas também precisa ser “social” e “político”, desta vez não para fomentar um regime opressivo ditatorial, como no tricampeonato mundial de 70 (quando já vigia há dois anos o Ato Institucional n. 05),  mas para defesa de outras causas (quem sabe a defesa do sistema nacional de participação popular não seja uma delas).

Mais do que o brasileiro aprender a torcer (o cântico “eu sou brasileiro com muito orgulho e de coração”, mais do que piegas, soa um tanto quanto falso), tão relevante quanto o Brasil ser desafiado a “mostrar a sua força”,  para além do ganho turístico do Brasil (que sem dúvida precisa ser incrementado, pois é tremendamente mal explorado por nomeações políticas e falta de profissionalismo de uma composição de Ministério feita em nome da necessária "governabilidade"), o povo brasileiro também precisa aprender a votar e a viver o país com cuidado e paixão durante todo o tempo, e não apenas de quatro em quatro anos. Esse pode ser o maior legado da Copa que, 84 anos depois, depois do trauma de 1950, voltou ao Brasil. 

A “pátria de chuteiras” (Nelson Rodrigues) precisa ser a pátria que vai consciente às urnas e calça a preocupação das ruas para que os que mandem, apenas o façam obedecendo, como prega o lema zapatista, que aqui até agora só vale para os desejos gananciosos e desmedidos da FIFA. 

Nossa disputa não é contra os demais países do mundo, mas contra nós mesmos, com a forma de se fazer política no Brasil, com a necessidade de realização dos otimistas objetivos da República.

Torcer e votar por um país melhor, sem analfabetismo, com mais saúde e educação, com menos desigualdade, está aí uma estrela que verdadeiramente nos falta...aí reside a verdadeira “Copa das Copas”.