sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Morte


1. Nascemos com a certeza de que, assim como houve um começo, terá de haver um fim para nossa existência material. A infâmia é justamente nascer para morrer, não se sabe quando nem onde (CLARICE LINSPECTOR).

2. Permeada de dor e saudade, dinamizada e modificada na sua sensibilidade pelo transcorrer do tempo, a morte e a percepção crua da finitude que a caracteriza, talvez seja a experiência-limite de maior trauma e desafio para a existência humana.


3. Mesmo sabendo que a morte virá nos visitar, a sensação é que nunca estamos preparados para enfrentar a sua temível chegada, o que vale não só para a vivência individual de cada um, mas, especialmente, abrange a forma como somos obrigados a resistir ao falecimento de terceiros que amamos, admiramos ou simplesmente conhecemos.


4. Irreversível é a morte e imediatamente devastadores são seus efeitos. A inconformidade e resistência natural do ser humano em se relacionar com a morte passa pela terrível necessidade lógica de admitirmos o desaparecimento de alguém, algo similar a leitura melancólica do último capítulo de uma história, caminho segmentado e interrompido marcado por uma dolorosa falta "lacaniana", de tantas e desmedidas coisas que parecem ter ficado por fazer ou por dizer...


5. Todavia, por mais que o luto seja compreensível e necessário, devendo ser enfrentado de frente e sem subterfúgios, há de se ter o cuidado de não fazer da sua experiência infinita fonte de masoquismo e de busca irracional e desmedida culpa, algo infelizmente fomentado por fragmentos do cristianismo, sobre o que tão bem já discorreu o genial existencialista JEAN PAUL SARTRE.


6. De outro lado, morrer e querer entender o sentido e o mistério da vida é abrir caminho para eterna reticência, página em branco esperando tinta para ser escrita, inesgotável objeto de estudo. Desafio permanente para a filosofia, psicologia e medicina através da racionalidade, também integra a morte solo fértil para busca de explicações metafísicas que, para aquém e além da ciência, tem nas religiões verdadeiro caleidoscópio de dogmas, crença e fé. Muitas são as possibilidades e compreensões da morte não propriamente como fim, mas como transição de estado, espécie de "curva na estrada" (FERNANDO PESSOA), espiritualidade que inevitavelmente traz maior conforto, ainda que por ela não possamos fazer escolha.


7. Na morte a sensação de vazio, longe de ser aparente ou hiperdimensionado, é assustadoramente real e presente. Mesmo em tempos de reconhecida valorização do senso linguístico, faltam palavras para expressar a morte como experiência traumática a ser enfrentada no percurso árduo da existência. A impotência, o medo, a angústia e a proximidade do absurdo (CAMUS) são sentimentos reveladores da morte como situação de desespero para a limitada condição humana, talvez porque a sua inevitabilidade e irreversibilidade retire algo que sempre buscamos de modo consciente ou inconsciente: esperança.


8. De outro lado, as ordens civilizatórias históricas sempre tiveram na morte um elemento relevante para estabelecerem seus marcos de convivência e a construção da sua própria cultura, por mais que diferenças significativas existam quando se encara a temática da lado ocidental ou oriental. Por aí já vemos que a morte não precisa significar pura e simples destruição, tudo depende da forma e da lente através da qual a encaramos, da visão em paralaxe, como bem ensina ZIZEK.


9. Ao mesmo tempo que constitui tema desolador, aceitar a morte integra temática de pré-compreensão estritamente necessária, unilateral certeza que temos em tempos de pós-modernos nos quais a (i) mortalidade pelo próprio modo de vida caracteriza típica ilusão vital (BAUDRILLARD) que um dia chega para cobrar o seu preço...


10. Não obstante constitua experiência indiscutivelmente dramática, vencido o efeito corrosivo da perda de alguém que amamos, sem dúvida que mesmo essa experiência pode ser enriquecedora e pedagógica, e porque não fortalecer a condição de ser-aí-no-mundo (HEIDEGGER), nem que seja para explicar a inexorabilidade de sua finitude e, por conta disso, a necessidade de aproveitarmos o tempo e a forma de nossa experiência, incluindo o modo como nos relacionamos com o terceiros, com a natureza, e porque não com o próprio mundo.

11. Nesse contexto, o maior "recado" que a morte pode dar, além da dor e eterna saudade de quem perdemos, do verdadeiro suplício que é a súbita sensação de irreversibilidade do desaparecimento físico de alguém, passa justamente pela absorção do sentido de que a vida existe para ser celebrada com intensidade, a cada momento simples, com seu sabor doce e também com seu gosto amargo, sem qualquer tipo de vinculação ou adiamento de felicidade. Afinal, não sabemos quando estamos vivendo uma experiência pela última vez ou quando estamos nos despedindo de alguém que amamos com o último beijo ou abraço...


12. Saber viver e conviver de modo inteligente com a mortalidade precisa ser nosso próprio horizonte de sentido (GADAMER), por mais que este desafio parece algo propriamente invencível... Queiramos ou não, vida e morte são aspectos inerentes ao percurso da existência...


13. Se a morte é uma viagem e seu culto a preparação para um verdadeiro rito de passagem, que saibamos levar conosco a lição de MACHADO DE ASSIS, no sentido de que o tempo é o ministro da morte, mais do que isso, o principal elemento para metamorfosear as suas sensações e efeitos. Daí porque é de se desejar que tenhamos a autenticidade, mais do que isso, a verdadeira sabedoria, para desfrutarmos dos momentos felizes no melhor de nossa subjetividade, até mesmo porque são as lembranças e as recordações desses eventos que, juntamente com o fluir do tempo e o passar das estações, ajudarão a amenizar, e muito, os reflexos da morte ou da falta de alguém que perdemos...

14. De qualquer modo, não necessariamente o término da existência precisa estar além da própria experiência. Não devemos esperar a morte para perceber com clareza a transitoriedade e a resolutividade de todas as outras coisas e problemas banais que não raras vezes indevida e cotidianamente superdimensionamos. Fazer do menos mais, a todo tempo, não deixa de ser uma forma tola de suicídio. Que ninguém negue a morte como possibilidade complexa e enriquecedora reflexão, ainda que forçada. Não necessariamente precisa ser assim...


15. Por essas e outras que precisamos ter a clareza de perceber e admitir a ideia da morte enquanto estamos vivos, justamente para que possamos definir, da melhor forma, o que queremos e onde pretendemos chegar com o "prazo de validade" indeterminado e incerto da nossa existência. Trata-se apenas de seguir a lição do saudoso GONZAGUINHA, de viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Por mais que saibamos que a vida podia ser bem melhor e será, apesar de tudo não podemos deixar de dizer e repetir que ela é bonita, é bonita e é bonita...


15. Na verdade, como bem ensina o lúcido escritor e cineasta GUILHERMO ARRIAGA, paradoxalmente é a morte que dá sentido à vida, revelando, ainda que de modo trágico e traumático, por vezes súbito, todo seu maravilhoso e muitas vezes esquecido e real sentido. Será que já não é hora de encararmos a morte (e a vida) como unidimensionais anseios metafísicos? Que é que estamos esperando? Sejamos sábios responsáveis pelas nossas escolhas, do nascimento à morte, da biografia ao epitáfio...