domingo, 21 de abril de 2013

"Socrate" de Roberto Rosselini




Roberto Rosselini (1906-1977), célebre cineasta italiano, cuja filmografia contém dezenas de produções em aproximadamente quarenta anos dedicados à “sétima arte”, mostrou um recorte significativo (verdadeira cinebiografia) e artístico do ilustre filósofo grego em Socrate (Sócrates -Itália. 1971, 120 minutos. Versátil Home Vídeo), uma de suas últimas produções.

A filmagem de “Sócrates”, concebida originariamente como produto para a televisão (o que talvez explique os cortes abruptos entre diversas de suas marcantes cenas), realmente convence. Os cenários precários montados bizarramente como se fossem “de papelão” ao fundo da cidade de Atenas mostram que o bom cinema depende de diversos predicados, não necessariamente de incremento tecnológico computacional por vezes hiperbolizado, ainda mais nos dias de hoje, nos quais a quantidade não raras vezes derrota a qualidade em quase tudo que se produz no campo artístico tomado pela "indústria cultural" do lixo.

O início do filme, rodado em 1970, mostra o impacto da histórica (e temporária) vitória imposta pelos espartanos sobre os atenienses, tema a partir do qual, em verdadeiro caminho rumo ao absurdo (sem ser Camus), desenvolve-se o enredo que tem como ponto culminante o acontecimento de que Sócrates (433 a 333 antes de cristo), o “questionador”, será levado a julgamento por seus pares por supostamente não crer nos deuses e por corromper a juventude (qual o critério para ser jovem, afinal, indaga Sócrates a um dos tiranos, o qual  sucessivamente lhe responde que ser jovem é ter menos de 30 anos, no que o filósofo grego dá uma resposta sarcástica e irônica – recurso último bem explorado em diversos momentos, especialmente no julgamento, por exemplo, “que homem horrível é esse capaz de, sozinho corromper toda uma cidade?”), acusado por Meleto, Ânico e Liton.

A derrubada dos muros de Atenas, as conjecturas desse momento e o vai e vem cotidiano dos cidadãos atenenienses pelo cenário das casas de pedra, do solo de terra, dos bustos, do mercado, dos prédios institucionais de pilares robustos, pode funcionar como uma interessante metáfora para a injustiça praticada com Sócrates, logo ele que tanto se preocupou com as questões da cidade.  A imputação, da forma como retratada no filme, é não crer nas ideias de Atenas (quais?), propor novas crenças (quais?), corromper a juventude (como?), ou seja, a mais vaga, incerta e fantasiosa possível (de certo modo kafkiana, também).

Sócrates, diferentemente de outros oradores inclinados a atuarem como preceptores de nobres, nenhum proveito financeiro obteve em benefício próprio (“desgraçadamente sou ignorante e minha sabedoria é saber que nada sei e isso não pode ser vendido”), tendo vida pobre cercada de provações, situação que, tal como o filme mostra, sempre gerou sistemáticas cobranças familiares de sua esposa Xântipe, retratada em dois momentos: primeiro como histérica esposa segundo a qual o trabalho do marido e suas pregações aos seriam inúteis e somente serviriam para dar margem a perseguições; depois, como  sábia mãe que consola dos filhos pedindo que esses se inspirem na coragem e exemplo do pai, redenção com a qual parece compreender a grandeza do companheiro que tinha ao seu lado.

Depois de recusar-se de ser defendido por Lisias, ao entender que sua bem intencionada retórica trabalharia mais para a mentira do que para a verdade, coube à Sócrates encarregar-se da sua própria defesa diante de mais de quinhentos jurados escolhidos na sorte, entre a fava branca e a negra. Como se defender de uma acusação injusta e absurda? Eis a questão.

O fato é que nem mesmo uma acusação absurdamente fraca e desprovida de qualquer elemento de prova afastou Sócrates de ser coerente com a sua verdade (e condenado por 60 votos), o que incluía preferir morrer esperando a sicuta tomar-lhe gananciosamente o corpo do que, nas suas palavras, responder uma injustiça  com uma outra suposta “injustiça”, que, no seu entender, seria fugir da sanção do Estado (“Se morro não é pelas leis, mas pelos homens”). Essa mesma ideia fez com que Sócrates não tenha aceitado transigir com a pena aplicada. Paradoxalmente, o mesmo Estado que Sócrates apostou é aquele que lhe deu as costas e submeteu-o a julgamento. Todavia, entre se insurgir contra o Estado e enfrentar a morte, Sócrates prefere a segunda alternativa. A morte também tem sua dignidade muitas vezes maior do que, na palavra de Sócrates, somar ridículos esforços para ficar vivo a qualquer preço (que lição). Quem vai dizer se é melhor morrer ou continuar a viver, diz Sócrates, é a divindade. Em último grau é ela quem irá julgar o rumo e o sentido do seu “julgamento”.

A dimensão de alteridade de Sócrates é tanta que nem na hora do seu desejo final ele não consegue fazer outra coisa a não pensar os problemas coletivos da cidade, ocasião em que, no plano pessoal, limita-se a pedir que seus filhos sejam duramente  corrigidos e repreendidos se desviarem do caminho da virtude, tal como ele faria se estivesse vivo. A mesma alteridade faz com que ele se banhe e se vista para morrer para evitar que a esposa tivesse esse desgosto.Sócrates também sabia que a felicidade não está na beleza nem na riqueza, mas na busca de ser justo, na adequação do conhecimento e da prática.

A cena de Sócrates explicando os motivos pelos quais deveria fazer sua própria defesa e o modo como Sócrates se porta no Tribunal já valeriam o filme, mostrando todo o seu potencial reflexivo, especialmente se considerarmos a dificuldade que pretender expor algumas linhas gerais de uma determinada linha filosófica pela lente do cinema.

Sócrates, na sua ignorância de nada saber (que teria lhe rendido a indicação pelo oráculo), é consciente de que não há nada pior do que as presunções, das pessoas que pretendem ter opinião sobre tudo. Esse, na sua visão, foi um dos problemas da derrota de Atenas para Esparta.

Uma outra lição de Sócrates bem amparada em uma passagem destacada no filme é de que a medicina cura os corpos e a política deveria curar a justiça e a busca do bem comum, embora saibamos que infelizmente não é assim que as coisas funcionam (ah como estamos longe disso, como precisamos de filosofia política para superar o que se assiste no âmbito da realidade). A forma serena como se apresenta o caráter questionador de Sócrates é um convite para um conhecimento mais adequado da sua proposta filosófica longe da vulgata tradicional, algo, repita-se, muito difícil de se fazer na linguagem do cinema.

Melhor que o filme só mesmo comparar a coerência do retrato feito com os célebres discursos socráticos (Apologia, Críton e Fédon) e aprofundar o debate filosófico sobre o caráter satisfatório ou não da proposta.

Apesar de ser julgado pelos motivos já expostos, tudo que Sócrates fazia era acreditar nos deuses, tanto que, como o filme bem mostra, por isso suas palavras não vinham tão naturalmente, por isso a sua aceitação da morte é resignada. A despedida de Sócrates e suas reflexões sobre a morte como naturalidade que condena todos é preciosa.

Loucura negar-se a obedecer a ordem dos tiranos? Loucura em aceitar a morte com essa passividade? Como diz Sócrates em certa altura do filme, as vezes é preciso ser louco para que cada um diga a sua verdade de acordo com a sua maneira. E, como a certo momento diz Sócrates, o sono, a morte (e porque não os bons filmes), inegavelmente dão certa paz.