sábado, 11 de julho de 2009

“Arte para crianças” (e adolescentes): lição do Estatuto da Criança e Adolescente, de Walter Benjamin e de Evandro Salles


Trata-se do preconceito segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente inventivos para distrai-las. Em seu preconceito, eles não vêem que a terra está cheia de substâncias puras e infalsificáveis capazes de despertar o interesse das crianças” Walter Benjamin

Para se ter acesso a conhecimento, cultura e arte, realmente não deveria existir tempo, preço ou idade. Para atender e fazer observar direitos fundamentais e humanos de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito igualmente não poderiam faltar recursos, consciência e vontade. A realidade e o senso comum, porém, teimam em pensar e fazer diferente.

Apresentar e disponibilizar o mundo da arte ao universo infantil, permitir construção de cidadania e formação de espírito crítico a seres especiais em peculiar condição de crescimento e desenvolvimento sem dúvida contempla os princípios e as premissas da doutrina da proteção integral que os constituintes representantes do povo brasileiro tanto quiseram ver observadas quando da edição da Constituição da República em 1988 e, ano seguinte, na promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente, por mais que isso por vezes pareça uma grande e fantástica quimera.

Pois bem, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) está prestes a completar 19 anos de aniversário no próximo dia 13 de julho e, infelizmente, muitas de suas premissas ainda são promessas e vazias retóricas, dentre as quais acesso ao conhecimento, lazer e cultura, dentro ou fora do ambiente escolar, inclusive no específico campo da arte.

Os motivos são muitos e abrangem certamente a falta quantitativa e qualitativa de políticas públicas eficientes, especialmente porque o orçamento voltado exclusivamente para criança e adolescente dos Municípios, Estados e da União, de forma mais aguda ainda no campo da cultura, ainda está muito distante de cumprir com os comandos constitucionais da prioridade absoluta (artigo 227 da CR) e destinação privilegiada e preferencial de recursos públicos (artigo 4º do ECA), inclusive para garantir acesso e conhecimento num elo fundamental: criança, juventude e arte.

Sendo assim, ideal seria se a sociedade política e civil direcionasse esforços para aproximar o universo e a linguagem da arte a crianças e adolescentes, pois, quem sabe assim a pátria do futuro poderá sonhar e acordar num mundo mais próspero e pleno de verdadeira e emancipadora cidadania, sentimento último que não pode ficar associado à criança e adolescente apenas uma vez por ano, quando da divulgação de determinado e específico programa “global”, "lembrado" talvez para esclarecer o grande "esquecimento" do tema nos outros 364 dias, especialmente quando as finalidades informativas, educativas, culturais e sobretudo artísticas dos meios de comunicação não rompem a tinta do artigo 221 da Constituição da República.

Dentre tantas carências materiais e intelectuais de um país que ainda busca um verdadeiro projeto, um dos novos caminhos civilizatórios pode passar pelo atrelamento da criança e adolescente a uma das maiores expressões de cultura a ser usufruída pela humanidade: a arte.

Sobram motivos para que assim se entenda. Primeiro, porque arte é não só uma forma de compreensão da história do passado, presente e futuro do mundo, como, sobretudo, liberdade e possibilidade de protagonismo, de opinião e expressão (artigo 16, II, do ECA), especialmente para os sujeitos de direito que já tiverem habilitados a participarem da vida política do país, que tanto precisa de novas caras, siglas, signos, símbolos e energias (artigo 16, VI, do ECA). Segundo, porque se o conceito de saúde contempla o bem-estar em todas as formas, e se crianças e adolescentes têm direito de proteção nesse aspecto (artigo 7º do ECA), ingressar no caleidoscópio das possibilidades do rico universo artístico é abrir portas e janelas para o mundo, comunicar e bricolar novos significantes e significados no caminho e no novelo da linguagem, como bem ensina Alexandre Morais da Rosa, ainda que falando de outro assunto. Terceiro, porque garantir acesso e participação da criança e jovem em atividades artísticas é assegurar educação que permita pleno desenvolvimento da pessoa, prepará-la para exercício da cidadania e, quem sabe, para o próprio trabalho, como bem diz o artigo 53 do mesmo ECA. Quarto, porque garantir acesso à arte é permitir e concretizar direito à informação, cultura e lazer assegurado pelo artigo 71 do mesmo ECA. Some-se isso tudo à idéia e previsão expressa de que as crianças e adolescentes devem dispor dos mesmos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (artigo 3º do ECA) e será difícil encontrar resposta para: 1) o fato dos equipamentos públicos (ex: museus, parques, etc), de modo geral, não guardarem a devida atenção para a importância da arte no desenvolvimento e educação infanto-juvenil; 2) o currículo escolar e profissional, da educação infantil ao ensino superior, não estar atento à necessidade de maior valorização da arte na sua articulação com a educação e as políticas públicas; 3) a constatação de que a iniciativa privada, o terceiro setor e as organizações não-governamentais, enfim, a sociedade em geral, não estão atentos e verdadeiramente despertos para valorizar a importância e a verdadeira "revolução" que pode ser para uma criança e adolescente acessar, experimentar, vivenciar e mesmo produzir arte sob todas as suas múltiplas formas e infinitos conteúdos.

Que logo isso tudo possa mudar e que o Estatuto da Criança e Adolescente, que já passou um ano da sua maioridade, possa ganhar cores mais vivas no direito achado (e encontrado) na rua, como quer Boaventura Santos, pois só assim esta preciosa legislação será conhecida, compreendida e respeitada pela sociedade e, sobretudo, pela hoje desacreditada classe política. A otimização da efetividade do Estatuto enquanto lei certamente contribuirá para reforçar a importância, o patrimônio e o legado extraordinário da experiência artística na formação pedagógica, no acesso ao conhecimento e na incessante busca de maior participação cívica- cidadã e pensamento crítico de parte de nossas crianças e adolescentes.

Nesse contexto, oportuno homenagear Evandro Salles, sua equipe e os mentores do maravilhoso Projeto “Arte para Crianças” que, sem pretensão de "infantilizar" a arte, não raras vezes vista como mercadoria de poucos privilegiados, percorreu algumas capitais brasileiras (São Luis, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo...) enfatizando importância da partipação, do protagonismo e da valorização e contribuição linguística e auto-explicativa da arte para o universo desta pequena gente-sujeito que, por incrível que pareça, nas palavras do próprio artista, constitui um público hoje quase totalmente impedido de assim proceder no seu âmbito. Ou seja, na restrição quando não impossibilidade do desfrute da arte pela criança e jovem, encontramos mais uma moratória infanto-juvenil perdida no baú das possibilidades.

Que os tempos possam mudar e que venha a necessária conscientização para que as famílias, as escolas, os museus e os mais variados espaços públicos e privados saibam valorizar e entender que através da arte com crianças (e adolescentes) é possível construir um novo e melhor futuro, uma verdadeira língua própria que muito contribuirá para o crescimento e desenvolvimento sadio e digno de nossas crianças e adolescentes, da sociedade do futuro.

A propósito, como bem ensina o artista suíço Paul Klee, segundo o qual a arte não reproduz o visível, mas torna visível, tendo em vista que a arte não serve para copiar as coisas que já existem, mas para criar as que ainda não existem, lembrado pelo talentoso Evandro Salles, talvez por isso que certamente muitos políticos, governantes e empresários deste país (que está longe de ser realmente de todos no acesso à cultura) ainda não querem investir ou mesmo acreditar na arte para (e com) crianças e adolescentes, horizonte que precisa urgentemente mudar, no concreto e no imaginário.

Afinal, nada melhor ou mais animador para embalar a esperança (e o sonho) de um mundo melhor e mais justo do que a combinação de uma criança e um adolescente fundidos na visão, no olhar, na escuta, na fala ou no silêncio de uma obra de arte...para pensar, criar e, sobretudo, transformar, ação última do Estado Democrático de Direito idealizado pela Constituição que não pode ficar para sempre adormecida.

E para quem, a estas alturas, ainda achar que arte é assunto de adulto, que criança e adolescentes ainda são tão objetos como uma simples e para muitos "incompreensível" obra de arte moderna ou pós-moderna, nada melhor que voltar a lembrar o valoroso Evandro Salles: A dimensão da arte é atemporal e sem gêneros. Como no que diz respeito às faculdades de pensar, ver ou falar, na arte não existem distinções dessa ordem. Todo ser humano indistintamente detém tais faculdades, e seu acesso a elas é irrestrito, desde que estejam asseguradas suas condições de desenvolvimento. Para que alguém viva a experiência da arte, basta que tenha um contato adequado e direto com os objetos que a engendram.
Parabéns ao Estatuto da Criança e Adolescente, na expectativa de que este constitua-se cada vez mais num instrumento de aquisição de direitos, de respeito à participação e protagonismo de crianças e adolescentes, tão ricas de alegria, mistérios, curiosidade, significados e significantes, territórios desconhecidos (Warat), verdadeiras obras de arte...

4 comentários:

  1. Dessa leitura me insiste a lembrança de uma passagem de O Admirável Novo Mundo, de Huxley, em que as crianças eram condicionadas a odiarem as flores e os livros.

    Nessa matriz neoliberal em que estamos imersos, valeu a pena para o mercado investir na estupidez humana. Crianças aprendem a gostar de armas e humilhar o dito "loser".

    "As flores do campo e as paisagens, advertiu, têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica. Decidiu-se que era preciso aboli-lo, pelo menos nas classes mais baixas (...)" (

    Bacana o blog. Parabéns.

    Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Belo texto ! Se quisermos um mundo melhor, um Brasil melhor,temos que dar mais atenção para as Crianças e Adolescentes! Como muito bem foi dito ,lá se vão 19 anos de ECA,E HÁ MUITO PARA SER FEITO.
    Uma Educação para ser completa tem que INCLUIR O ACESSO E O CONHECIMENTO DA ARTE NAS SUAS VÁRIAS FORMAS : MÚSICA,ARTES PLÁSTICAS,LITERA
    TURA E TEATRO.
    Adorei a citação de PAUL KLEE : A ARTE SERVE PARA CRIAR AS COISAS QUE AINDA NÃO EXISTEM.
    QUEREMOS E PRECISAMOS PARA NOSSAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES UMA VERDADEIRA EDUCAÇÃO E NÃO UMA PSEUDO EDUCAÇÃO.

    ResponderExcluir
  3. Já dizia o Prof. Warat: "as garantias são como promessas de amor: nunca podem ser cumpridas na totalidade". O ECA existe apenas como plataforma política, nada mais. Uma pena.

    parabéns pelo blog!

    ResponderExcluir
  4. Caros amigos, sou desenhista ilustrador e cartunista. Não ganho a vida com minha arte, mas sonho em construir um projeto na minha cidade pra ajudar crianças e adolescentes com ensino passo a passo de diferentes tecnicas da arte grafica. pesquisando sobre isso me deparei com esse site e o texto é bem oportuno pro meu objetivo de contribuir com uma pequena gotinha Para trazer crianças e adolescentes à cultura.
    A quem possa interessar, meu blog: http://artesdepolo.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir

Dê a sua tesourada, faça o seu comentário: