sábado, 4 de julho de 2009

Negativa oficial de voto ao preso provisório na ótica do TRE-SP: "conversa de clube" ou simples violação do art. 15, III, da Constituição?


“Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão?” Eduardo Galeano (Espelhos)

Não bastasse o seu campo não raras vezes simbólico e imaginário, forçoso constatar que fração da Justiça Eleitoral brasileira, por conta de resultado de julgamento realizado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), no último 16 de junho de 2009, perde mais uma significativa e franca possibilidade de ganhar um pouco mais de credibilidade e afirmação social em prol da concretização de direitos humanos fundamentais.

Após elogiável representação formulada pelo diligente representante do Ministério Público Eleitoral, na pessoa do Procurador Regional Eleitoral oficiante junto à referida Corte Eleitoral paulista, basta perceber o teor e a fundamentação das decisões e votos “vencedores” para constatar como é fácil no sistema jurídico brasileiro negar direito fundamental e derrotar a Constituição e a substancial democracia por trás da “burocracia” e, pior de tudo, do “preconceito” e “higiene” de classe.

Com uma linha de argumentação absolutamente reacionária e absurdamente preconceituosa, de baixíssima densidade jurídica e social, o referido Tribunal Eleitoral, por maioria, entendeu por bem em oficializar, mais uma vez, a negativa de um direito expresso, líquido e certo garantido pela Constituição da República de 1988 que, ao suspender direitos políticos do preso com condenação transitada em julgado (em relação a qual não cabe mais recurso), obviamente assegurou e contemplou tal direito fundamental de cidadania ativa aos presos provisórios. A despeito disso, sempre bom lembrar que segundo o artigo 15 da Constituição da República, somado ao seu inciso III, é vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de (...) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”.

Difícil imaginar que uma macroestrutura excessivamente onerosa como a Justiça Eleitoral, de trabalho periódico e praticamente bianual (Eleições a cada dois anos) e com volume de atividades infinitamente inferior ao destinado cotidiana e permanentemente aos demais ramos do Judiciário (onde muitas vezes falta mínima estrutura para garantir acesso qualitativo e célere ao desejo de Justiça), ao invés de se preocupar em maximizar meios de disponibilizar sua estrutura à serviço da democracia (incluída a disponibilização de equipamentos para eleições não-oficiais como de Conselheiros Tutelares), prefira o “conforto” e a “comodidade” da estagnação pífia que, ao negar direito humano fundamental de voto do preso provisório, ao violar garantia de cidadania e capacidade eleitoral ativa prevista pela Constituição, contribui para distanciar e desacreditar o Judiciário perante a sociedade, fato já constatado em diversas e recentes pesquisas de opinião.

Ouvir o áudio da sessão de julgamento do TRE sobre o tema em questão serve para evidenciar e demonstrar como pode ser preocupantemente baixo o senso e sentimento de constitucionalidade a julgar pela natureza e qualidade dos argumentos por vezes invocados pelo Judiciário brasileiro. Escutar o teor do julgamento em questão é a prova preocupante pronta e acabada de que não raras vezes argumentos reacionários e absolutamente menores servem de justificativa oficial à negação de um direito fundamental, o que muitas vezes não é objeto de conhecimento da sociedade ou divulgação da grande mídia.

Elogio mesmo merecem o Procurador Regional Eleitoral que propôs a medida e o único e solitário Juiz Eleitoral que, no enfrentamento do tema, entendeu e preferiu determinar o cumprimento da Constituição em lugar de apresentar supostas dificuldades operacionais para efetivação de uma medida cuja falta de implementação, por si só, considerando o tempo decorrido (passados mais de 20 anos da Constituição e muitas Eleições), já deveria ser motivo da mais absoluta vergonha.

A infeliz incapacidade de transformar a Constituição em realidade materializada pelo julgamento do TRE-SP é cotidianamente vivenciada num Judiciário brasileiro que, por vezes, parece viver intensa crise de funcionalidade, que inclui tanto necessidade de reflexão sobre a seleção e formação dos seus magistrados (incluidas as Cortes Eleitorais), como também sugere necessidade de se discutir o reduzido grau de efetividade e celeridade no processamento das tutelas coletivas, Poder Judiciário nacional que, por vezes, parece incapaz de desempenhar um simples e fundamental papel: observar e fazer cumprir a Constituição (tarefa que deve valer apenas para o Executivo e Legislativo, mas também precisa vincular a próprio Judiciário enquanto poder do Estado Democrático de Direito).

Pior de tudo é ter de ouvir magistrado eleitoral justificando a impossibilidade prática da medida de se assegurar voto aos presos provisórios sob o argumento da existência de uma “série de coisas constitucionais que não se aplicam”, como consta do próprio precedente. Igualmente preocupante é escutar sustentação de que a discussão em pauta a partir da representação feita revelaria “colidência de direitos”, pois no artigo 15, III, da Constituição haveria um direito que não seria exeqüível na sua totalidade em virtude do direito de segurança da sociedade que, no caso, supostamente impediria a possibilidade de exercício do voto ao preso provisório.

Duro de ouvir argumento de autoridade de que assim se faz ou assim se vota com a pseudo e implícita experiência e sabedoria de quem acompanha eleição “desde o tempo das cédulas”, quando talvez melhor e mais verdadeiro fosse reconhecer adormecimento de consciência no passado anterior à própria Constituição de 1988, no que se inclui a dívida histórica de quase quatro séculos de escravidão e aproximadamente vinte cinco anos de Ditadura Militar.

Terrível, ainda, ouvir Juiz Eleitoral justificar seu posicionamento de vedação de voto ao preso provisório sob argumento de que esta situação cumulada com a parcial obrigatoriedade do voto seria uma espécie de incentivo ao "voto de protesto", raciocínio que, segundo confessado pelo próprio magistrado, teria sido extraído de uma consulta que este afirmou certa vez ter feito com pessoas do seu mesmo nível social, curiosamente feita em um clube (quem sabe de tênis ou golfe, desses esportes mesmo que só a elite costumeiramente pratica). Segundo o mesmo Juiz, na sua aparente “cegueira” (ou seria "treva branca"?) interpretativa, não haveria sequer garantia e direito fundamental ao preso provisório votar, pois isso não estaria expresso na Constituição.

Complicado, ainda por cima, ter de ouvir questionamentos do tipo “em quem o preso vai votar?”, preocupação que, se vale para o sujeito privado da liberdade, pode ser estendida à sociedade brasileira como um todo, risco inerente à própria democracia que, obviamente, não pode ser invocado apenas para determinada categoria de pessoas hipossuficientes e em situação de vulnerabilidade. Afinal de contas, não é preciso muita perspicácia e luz para perceber que a mesma ideal restrição de “liberdade” eleitoral incide não apenas para o preso, como também invade potencialmente todos os rincões e bolsões de pobreza e miserabilidade do nosso país, onde a influência, a cooptação e a captação ilícita do sufrágio ainda ocorrem nas barbas e nos olhos da, por vezes literalmente "cega" (ou seria simplesmente daltônica?), Justiça Eleitoral, a quem ainda falta ideal estrutura de organização, fiscalização e efetividade para fazer valer a democracia substancial.

Verdadeiramente abominável ouvir o áudio da sessão e perceber que determinado Juiz, talvez para suprir o seu excessivo esvaziamento ou despreparo técnico-jurídico para discussão constitucional do tema, tenha preferido destilar veneno ironizando o Estado do Rio Grande do Sul, espaço no qual já houve experiência positiva para o voto dos presos provisórios, magistrado esse que, aliás, demonstra curiosa e profunda ignorância com o direito alternativo e, inclusive, com a própria hermenêutica.
Talvez para o referido julgador interpretar a lei como se quer ou, em suas palavras, contornar a lei, somente deva ser uma opção legítima e válida para negar a Constituição, nada mais. Segundo este mesmo Juiz eleitoral, garantir a concretização de direito fundamental aos presos provisórios seria o mesmo que “dar direito aos piores”, o que realmente encerra a possibilidade de se continuar querendo fazer qualquer compreensão mais democrática e imparcial do seu relato, afinal, o próprio magistrado, em seu voto, em certo momento reconheceu estar vendo caso pelo conceito (ou seria pré-conceito?).

De outro lado, alegar que “preso não votaria bem”, justamente por não dispor de acesso à informação e propaganda eleitoral, soa como uma cínica ironia, não só porque aos analfabetos é assegurado a facultatividade do voto, como bem apontado pelo valoroso julgador vencido na oportunidade, mas também considerando (e aqui o fundamento é nosso), que a Corte Eleitoral em questão está situada justamente no Estado da Federação que exemplificativamente elegeu os “polêmicos” Paulo Maluf e o falecido e exótico estilista Clodovil para a Câmara Federal dos Deputados.
Talvez seja justamente pelo fato de o direito de voto do preso provisório estar esquecido numa verdadeira "arca perdida", que a execução e os estabelecimentos penais brasileiros são a verdadeira expressão da barbárie, estado de exceção (AGAMBEN) permanente que nega cumprimento à Constituição, solidifica a ausência do Estado e, aí sim, permite o nocivo desenvolvimento de organizações criminosas sob a “roupagem” de partido voltado aos interesses da massa e comunidade carcerária.

Difícil acreditar que haveria “enorme dificuldade para fazer presos provisórios votarem” nas Eleições de 2010, especialmente para um Judiciário brasileiro que já teve, no seu quadro, juízes como a saudosa Professora Cleusa Mariza Silveira de Azevedo, que durante todo seu tempo de vida, na jurisdição, na sala de aula e em diversos eventos de execução penal, sempre foi uma briosa e corajosa defensora do direito de voto e protagonismo aos presos provisórios que, talvez para desespero de muitos, pela Constituição, tiveram sim assegurada sua capacidade eleitoral ativa, o que também, no caso concreto, foi acertado e elogiável entendimento do Procurador Regional Eleitoral Luiz Carlos dos Santos Gonçalves e do Juiz Eleitoral Walter de Almeida Guilherme.

A única enorme e insuperável dificuldade, no caso, parece ser que o Tribunal Regional Eleitoral (e outros que eventualmente possam comungar do mesmo entendimento) respeitem a Constituição e a façam cumprir deixando de lado argumentos absolutamente reacionários e preconceituosos. Tem-se no caso do TRE-SP mais um lamentável precedente que coloca óbices operacionais à frente da Lei Maior, situação que somente pode encontrar alguma "explicação" na interdisciplinaridade circular de outros campos do conhecimento, quem sabe filosofia, sociologia e psicologia.

Quem quiser conferir que o referido julgamento que, embora não pareça, constitui fato lamentavelmente verídico, fique à vontade (ou não) para acessar o áudio da sessão (http://s.conjur.com.br/dl/julgamento-tre-sp-di.mp3 ou mesmo verificar um dos votos “vencedores” (http://s.conjur.com.br/dl/voto-baptista-pereir.pdf), tudo para que, desse histórico, cada leitor extraia suas próprias conclusões e recortes críticos. Afinal, este breve ensaio não passa da fantasia de se tentar exercitar a lição deixada por Saramago, a responsabilidade de ver, nada impedindo que, democraticamente, alguém possa, como sugerido por um dos Juízes do caso, preferir conversar sobre o tema, de preferência, claro, apenas “com pessoas do nosso nível, não jurídico, mas nosso nível social, num ambiente social, evidentemente, num clube (...)”.

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