domingo, 30 de agosto de 2009

Algumas linhas sobre interpretação & hermenêutica e a “pedra no caminho” (STF): não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa...


“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei deste acontecimento (...)
Nunca me esquerecei que no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade

Encontrar o Direito no caminho da Justiça é tarefa que exige interpretação e compreensão de normas (regras e princípios) em nome de plurais sentidos, tarefa valorativa de escolha, que até pode ser pretensamente imparcial sob o ponto de vista objetivo, nunca subjetivamente neutra. Declarar e extrair sentidos, mais do que cega e determinista representação própria de um pobre silogismo, precisa constituir ato técnico e, sobretudo, motivado, forjado, de preferência, longe do senso comum teórico e dos grilhões dos sedativos entendimentos ditos dominantes, herdeiros da mítica (e enganosa) segurança jurídica. Como ato humano que é, obviamente que essa difícil missão não está longe do erro, dos vícios, muito menos da discussão do questionamento, do pensamento, inclusive dos limites democráticos das escolhas feitas... Estudar e compreender a compreensão e aplicação da lei como fenômeno é missão para a hermenêutica, a ciência da interpretação.
Assim, superada a equivocada ideia de que a interpretação se encerra míope e univocamente no texto da lei (quando dele apenas parte e começa), a busca dos muitos significados e universos possíveis, além de grande aventura no campo do saber, talvez seja uma das maiores provas de que o Direito é um produto eminentemente cultural e, como tal, sempre aberto ao espírito livre para pensar e refletir criticamente sobre novos paradigmas, suas muitas verdades, especialmente aquelas capazes de interferência positiva e significativa na realidade, notadamente quando tem a possibilidade de serem peremptórias e definitivas.
A propósito, no permanente desafio de se interpretar bem a lei (ou o que mais se parece com ela nos seus requisitos essenciais), é o balanceamento e equilíbrio de um conjunto de variáveis que será determinante para uma boa ou má trajetória, que, definitivamente, passa longe por uma misteriosa e enganosa busca de uma vontade etérea (e sempre invisível) do legislador: a maldita “mens legis”.
Quem tem que interpretar e se posicionar é o intérprete, aqui e agora, no horizonte e na constelação da sua consciência com as ferramentas técnicas e intelectuais que dispõe, pois é desta aplicação que há o verdadeiro encontro do sujeito (intérprete) com o objeto (norma), verdadeira e inexorável simbiosa entre a teoria e a prática, desafio constante da ciência...(que, claro, como ensina EDGAR MORIN, não se faz sem “consciência”, sem uma ética voltada para valores da humanidade). Qualquer outra influência que não a convicção e a consciência é perniciosa, quando não propriamente ato desonesto da maior multiplicidade...
Como ensina PAULO QUEIROZ, tal como na arte e na música, o compromisso de se interpretar passa por uma dose de talento, ainda que o peso decisivo esteja com a vontade (quando não “desejo” psicanalítico) de se obter o justo, sucesso que depende do foco e da sensibilidade da lente através da qual este objetivo é buscado. Mais do que talento, vontade e sensibilidade, a segurança do caminho a seguir depende do que se sabe, passa pelo conteúdo do que se acredita, do que se quer intimamente buscar...ainda que isso jamais possa se constituir em blindagem para que se possa dizer tudo sobre qualquer coisa de modo livre de conseqüências, especialmente quando o fim visado constitui uma escolha ou verdadeira troca impossível (BAUDRILLARD).
Quando inexiste esta vontade de justo ou quando pré-compreensões viciadas influenciam a vontade de se produzir resultado de julgamento num determinado sentido, quando está ausente espaço e possibilidade democrática para encontro dialógico de minha convicção com o pensamento e questionamento alheio, aí começam os problemas...
Nesse panorama, descobrir a hermenêutica, na teoria e prática, nada mais é do que adquirir habilitação e instrumentos para o desvendamento e revelação de novos rumos e paradigmas, pressupostos para a busca de emancipatórios horizontes de compreensão e de sentido.
Nessa árdua missão interpretativa, a única certeza que se tem é o que esse sonhado e esperado justo, além de uma boa lei, passa por interpretar bem, especialmente quando se tem a única (ou a última chance de assim fazer), quando o horizonte de sentido escolhido pode enterrar um resultado juridicamente definitivo.
Por falar em interpretação e hermenêutica nesses termos, está mais do que na hora de se discutir a capacidade de julgamento do Supremo Tribunal Federal por decisões recentes (v.g, 1 - lei abusiva que permite a privatização e exploração do petróleo como riqueza natural; 2 - na distinção absurda feita entre cargos comissionados “de primeiro escalão” e de “agentes políticos” que permitiria tolerância ao nepotismo; 3 - em violações explícitas aos direitos de trabalhadores na nova Lei de Falências e Recuperação Judicial; 4 - ideia de que a gestão democrática do ensino público é incompatível com eleições diretas nas escolas públicas por questões burocráticas e atreladas puramente à iniciativa, e tantas outros precedentes mais...).
Como exemplo cabal do problemático e desabonador histórico recente do STF, que dizer então do “entendimento” adotado recentemente pela Corte Constitucional brasileira dando a entender que a “justa causa” no exame de denúncia contra réus que detém foro privilegiado (ex: ex-Ministro Palocci e o escândalo da quebra de sigilo do “caseiro”) pode se confundir com o mérito ao ponto de cercear atribuição constitucional do Ministério Público como titular da ação penal (artigo 129, I, do CR) e permitir negativa de vigência de disposição constitucional cuja força normativa (HESSE) precisa valer para todos e não apenas para clientes costumeiros da seletiva agência penal? Impedir pura e simplesmente a possibilidade da apuração de uma denúncia, da produção democrática de provas sobre ela dentro do devido processo legal, aliás, não é o que, guardadas as proporções e a transferência de esferas, fez a Comissão de Ética do próprio Senado Federal no “caso Sarney”, situação que mereceu tanto alarde e badalação da grande mídia?
Se é bem verdade que a hermenêutica pode estar em crise, que interpretar bem passa pela renovação e qualificação do ensino jurídico, pela superação da cultura positivista no caminho da interdisciplinaridade, talvez esteja na hora de se entender que interpretar bem a Constituição também passa pelo direcionamento de maior foco crítico a julgamentos concretos recentes do STF enquanto Corte Constitucional, na ótica e no arco-íris da linguagem...
Preocupante quando a “pedra no meio do caminho” (v.g, da concretização do princípio republicano da responsabilidade na esfera da persecução penal) é colocada por Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal, mínima e necessária reflexão que não pode deixar os fatos caírem no esquecimento...especialmente se formos buscar a raiz e a origem das coisas.
Afinal, como ensina LÊNIO STRECK, não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa e, por maior que seja a artimanha ou a retórica do discurso, até mesmo para a interpretação existem limites, especialmente no exercício da jurisdição constitucional pelo “monastério dos sábios”, que precisa estar sob o permanente crivo da capacidade crítica de todos nós enquanto “seres-aí”, pois a maior prova de “inautenticidade” (HEIDEGGER) de algumas soluções do STF precisa ser dada pela própria sociedade (e o aprendizado e as expressões aqui referidas são fruto da permanente interlocução com ALEXANDRE MORAIS DA ROSA[1]).
Alguém precisa “transcender” as portas e as “pedras” nos julgamentos do STF....(e aqui no “simbólico” talvez a melhor imagem dedutiva seja “Stonhendge”).
Nesse contexto, é de se perguntar como e quem pode consertar a chaminé da “usina jurisprudencial” do STF em um Poder Judiciário cuja cúpula está mais preocupada e “comprometida” (quando não intencionalmente alienada) com a fria e estatística observância de metas quantitativas e de rasteira “eficiência” em detrimento da interpretação e da melhor hermenêutica, de qualidade nos julgamentos? Isso, porém, já é assunto para outra e separada conversa... Para desespero nosso (e certamente do saudoso e genial DRUMMOND), existem outras muitas “pedras” no meio do caminho da Justiça, da interpretação e da hermenêutica, infelizmente...
[1] Vide Decisão Penal: bricolage de significantes. Capítulo 8, especialmente parágrafos sete e oito.

sábado, 15 de agosto de 2009

O “funk” como produto cultural capaz de produzir identidade, controle social e celebração para a efervescência do coletivo: uma ameaça ao capital?


"Com relação a todo tipo de festividade, a posição anti-individualista é tão comum que, num primeiro momento, o baile funk pode se tornar um ritual bastante óbvio (...) o funk carioca seria um bom motivo para questionarmos a ideia de um princípio de individuação dominante nas sociedades complexas (...) é óbvio que sendo puro gasto de energia, a festa pode contrariar o espírito do capitalismo” Hermano Vianna


Estigmatizado e marginalizado cotidianamente como gênero musical de apologia à criminalidade e culto desmedido à pornografia, o verdadeiro movimento "funk" constitui legítima expressão cultural-popular de qualidades e possibilidades muito superiores à visão preconceituosa explorada exaustivamente pela grande mídia.


Ao contrário do que se propaga, o funk responsável promovido em muitas comunidades populares e suburbanas tem na crítica social e política a sua mais forte raiz, merecendo reconhecimento e visibilidade como produto cultural brasileiro que precisa de apoio, divulgação e, sobretudo, respeito.


Pensar o funk pela embaçada lente do que é literalmente vendido pela grande imprensa, mormente em hilários tempos de disputa de "igrejas" no ambicioso mercado na comunicação (Globo X Record), é algo que definitivamente só interessa aos inimigos dos direito à expressão, lazer e cultura popular: todos direitos humanos fundamentais.


Discriminar o funk pelos “proibidões”, estes sim espaços corrompidos, usurpados e tolerantes com a violência e a criminalidade, inclusive no campo sexual e de gênero, também não é algo que se conceba como atitude aceitável. Reduzir o funk ao crime é fazer generalização indevida, punir muitos pelos desvios de poucos, negar direito a expressão cultural, tolher mecanismo de estímulo à consciência crítica, arbitrariedade que só interessa a quem desejar manter tudo exatamente como está, permanecendo devidamente diluídas as identidades...


Por outro lado, mesmo no funk que excede o campo social para o tema monolítico da excessiva e banalizante pornografia, é absolutamente supérfluo falar em ofensa à “moralidade” em tempos cruéis de falta (e incompreensão) de mínima "ética" de parte de muitas “autoridades constituídas”, estejam suas "cabeças" no Senado ou mesmo na Presidência do Supremo Tribunal Federal. Falar em pornografia no funk quando a publicidade brasileira e os meios de comunicação são seus maiores patrocinadores, também não deixa de ser um grande e paradoxal contra-senso.


Relação com a criminalidade, com a violência, com tráfico de drogas são expressões doentias difusas na sociedade contemporânea em todos os seus segmentos, ora com origem no Estado, ora com origem (e patrocínio) nas classes ditas mais abastadas, algo, portanto, muito distante de ser privilégio de um determinado gênero musical...


Nesse contexto, uma pena pensar que justamente o Rio de Janeiro, terra natal do funk tupiniquim, na sua temporária compulsão paranóica por mais “choques de ordem” e enfrentamentos patrocinados pelos governantes de plantão, permita a vigência da Lei Estadual n. 5.265/08, de autoria de ninguém mais ninguém menos do que o ex-Chefe da Polícia Civil fluminense, ex-Deputado Estadual, Álvaro Lins (PMDB/RJ), parlamentar cassado e acusado de envolvimento com atividades e instâncias criminosas. Consultar este específico registro parlamentar é presenciar desmedidas e irrazoáveis exigências para autorizar um baile funk (tratamento acústico, câmeras, antecedência mínima de 30 dias, etc), prova (nada simbólica) de como a seletividade e o etiquetamento podem migrar do crime para a música...Curioso mesmo é imaginar que as festas populares dos morros possam ser cerceadas quando não praticamente impedidas por requisitos desproporcionais que muitas baladas da Zona Sul carioca não conseguiriam atender.


Em plena democracia, certamente há quem queira manter o funk como produto marginal dissociado da legalidade, tipo musical exótico preso ao cotidiano supostamente frívolo e trivial dos (e para os) pobres, especialmente quando já se denuncia que muitos empresários-Djs-produtores têm lucrado e feito a sua verdadeira e particular festa com a exploração do talento alheio, tudo à revelia e indiferença da mesma indústria fonográfica que, claro, faz ouvidos moucos para esta verdadeira e nociva prática de “pirataria”, mais uma obra da cegueira (Saramago) que fica no campo do invisível.

Por mais que a Constituição da República (artigo 215), diga que o Estado deve garantir a todos o acesso a fontes de cultura e o pleno exercício dos direitos dela decorrentes, a real negativa do comando constitucional folha de papel (Lassale) se faz não só pelo orçamento inexpressivo dedicado aos pequenos projetos sociais da área, como, também, pelo preconceito e por uma visão equivocadamente estereotipada. Promover cultura popular no Brasil é, como ensina Humberto Gessinger, lutar na terra de gigantes, onde ainda se trocam vidas por diamantes, onde a liberdade continua sendo nada mais do que uma banda, numa propaganda de refrigerantes (ou quem sabe de telefonia celular...). Para fugir do tom, ficamos à espera das revoltas e das conquistas da juventude (que, vale dizer, precisam ir muito além, aliás, de um movimeto simples, arquitetado, descafeinado (Baudrillard), quase artificial "Fora Sarney", especialmente quando sabemos que o problema e a rede de "interesses" exige que se vá muito mais longe).


Sendo assim, não se há de ter dúvida que qualquer ritmo ou gênero musical capaz de questionar a (des) ordem estabelecida é passível de ser francamente excluído das rádios, das leis, das festas, dos bailes, quando não do acesso popular...que o diga o funk carioca de hoje...(que o diga o rap que denuncia a barbárie do sistema de execução penal, máquina de desigualdades).


Assim, antes da utilização indevida do aparato repressor policial para cercear cultura, apostar no funk pode ser o caminho para maior emancipação política, quando não palco de luta por maior cidadania e dignidade para as comunidades. Como bem diz acertadamente o parlamentar carioca Marcelo Freixo (PSOL/RJ), Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), o que torna uma sociedade mais segura é a capacidade que a sociedade tem de garantir uma cultura de direitos.

Afinal, é de se perguntar, que tanto medo os políticos, a elite e os governantes tem com a força cultural e do funk como instrumento artístico e musical de luta e engajamento por maior Justiça Social? Será que a Polícia de hoje serve de cera aos ouvidos para que todos fujam do encanto das sereias? (Homero-Ilíada)?

Quem sabe a roda de funk, com todas as mutações sofridas dos anos 80 até hoje, não possa ser um espaço para resgatar a crítica social, a boa Política que permita crer na democracia substancial, que viabilize a cobrança legítima e a disposição para a fiscalização que tanto tem faltado à sociedade brasileira...

Quem quiser conferir e ter acesso a uma visão plural, livre e democrática do funk, recomendo uma visita na APAFUNK - Associação dos Profissionais e Amigos do Funk: http://apafunk.blogspot.com/.

Conhecer a rica visão de Hermano Paes Vianna Junior no seu excepcional estudo sobre o baile e o mundo Funk Carioca também vale a pena. Quem quiser ir mais longe, como sugere o próprio Hermano na abertura do seu livro, pode começar a compreender o funk como “festa” na descrição de Durkheim, combinado de aproximação de distâncias, transgressões sociais e efervescência coletiva. Depois disso, que tal continuar a diversão da pesquisa encontrando a filosofia crítica de Nietzsche, que sempre alertou para o perigo de um dia sem dança, de uma vida sem música, do risco de uma verdade enunciada desacompanhada de uma boa risada? Para quem ainda desejar ampliar as conexões, quem sabe Marcuse não possa ajudar para mostrar que, a contrario sensu, a “indústria cultural” do funk vai longe da homogeneização reinante, podendo ser um estímulo para demonstrar o poder das massas, a força do coletivo...?


Se tiver de haver polêmica sobre o funk como produto cultural, que esta passe longe da abusiva intervenção policial, do contrário, goste-se ou não, qualquer semelhança com a ditadura e a MPB não será simples e mera coincidência...Se o funk servir para não deixar ninguém parado na luta subversiva por maior igualdade social, na construção da crítica sociopolítica, já está mais do que na hora de começarmos a apoiar o batidão...(ter o que reinvidicar é tudo o que não falta ao povo brasileiro; talvez já tenha passado a hora de entramos no ritmo).


Por essas e outras que muitos que querem calar o funk são seguidores, quando não descendentes, daqueles que lutavam contra o batuque que vinha da senzala (Adriana Facina), os mesmos que, poucos anos atrás, ainda usavam a farda e o medo para combater a democracia repensada a partir de uma noção mais holística, menos doentiamente egoísta...


Foram quase quatro séculos de escravidão, mais de duas décadas de ditadura, e ainda estamos em busca de liberdade para ser, pensar e ouvir, enfim, sair do individual para o coletivo, contemplar nova "lua" de oportunidades...


E quem insistir em não deixar o funk tocar... que se toque!

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Polícia brasileira que Mata: a “pedrada” que vem de dentro...




“Eu sou o pai do menino que vocês mataram”
Carlos Alberto Arnaldi, pai de Henrique Arnaldi, vítima da violência policial em Piracicaba-SP em outubro de 2008



Os níveis de violência policial no Brasil atingem índices alarmantes e, desde há muito, já deveriam ter chegado ao patamar da indignação, intolerância, quando não de verdadeiro e caótico estado de insuportabilidade. Em solo tupiniquim, toda vez que a narcodemocracia e o simbólico e irracional combate às drogas e armas obriga os organismos policiais à truculência inútil do “enfrentamento”, ocorra ele na verticalização geográfica dos morros ou mesmo na horizontalidade das outras cidades, a expectativa de morte de inocentes, duplamente vitimizados pela pobreza e omissão do Estado, constitui perigo real e iminente.

A militarização da Polícia brasileira e seus esquadrões especiais camufladamente treinados para matar não raras vezes atua na atmosfera da guerra. E nesta “guerra”, fácil perceber que quem perde e se vitimiza é a própria sociedade. Afinal, quem promete criminosamente buscar almas e deixar corpos estendidos no chão, pode merecer tudo (de filme premiado a modelo para uma assustada elite higienista), menos expressão e reconhecimento de um Estado Democrático de Direito, especialmente para um país que já presenciou tantas atrocidades praticadas pelos organismos policiais cooptados e desumanizados sob comando perverso da maldita Ditadura Militar. Aliás, tristes nações aquelas que não aprendem com as páginas escuras da sua história (Carandiru, Candelária, Eldorado dos Carajás, Complexo do Alemão...).

A estatística mostra que a letalidade da Polícia brasileira é inversamente proporcional à sua eficiência na prevenção e apuração de crimes, ao investimento humano na formação e valorização dos policiais, e, sobretudo, à efetivação de políticas públicas capazes de evitar alastramento da própria criminalidade. Apenas no Estado de São Paulo, entre 2007 e alguns meses de 2008, nada menos que 673 pessoas foram mortas em suposto “confronto” com a Polícia, quase um morto por dia. Absurdo, especialmente se pensarmos que na França, em todo ano de 2008, houve duas mortes em situação similar (apesar do Sarkozy).

Nesse morticínio todo, admitir idolatria de esquadrões policiais como o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) é ignorar premissa básica e simples: o agente policial quando representa o Estado não pode agir de outra forma que não mediante restrito e integral respeito à legalidade. Admitir violência, corrupção de valores, tortura e excesso policial é abrir espaço para que a barbárie se estabeleça. Polícia de elite? Só se for para vigiar e reprimir a própria elite e seus "crimes de colarinho branco", para os quais ninguém fala ou exige “tolerância zero”, nem mesmo a própria classe média que cotidianamente clama por mais segurança e a própria mídia que é a primeira a propalar e disseminar este tipo de sensação.

No contexto do problema, além de maior rigor e fiscalização na qualidade dos orçamentos públicos, na aplicação dos recursos dele derivados, muito antes da beligerância (e da ignorância), há de se trilhar o caminho da promoção do Estado Social, único instrumento capaz de prover condições mínimas de existência digna a todos, além, claro, da formulação e execução de políticas públicas eficientes e adequadas, especialmente no âmbito da segurança pública (direito de todos e dever do Estado, nos termos do artigo 144 da CR).

Repressão, combate e cânticos que semeiam ódio e destruição são painéis que devem ficar longe da oficialidade estatal e perto, muito perto do controle, da fiscalização e do monitoramento a ser feito pelo Ministério Público brasileiro, instituição encarregada de defender a sociedade e, em seu nome, exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, da Constituição da República).

Jovem inocente da periferia morrendo na mão da Polícia em suposto ato de “resistência” é o que não mais podemos tolerar. Não por acaso, recentemente, em julho deste ano de 2009, 30 (trinta) policiais militares foram denunciados por cometimento de crimes dolosos contra a vida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, mesmo local onde a ONU apontou a Polícia como responsável por 18% dos homicídios ocorridos no ano de 2007, média que chega a três mortos por dia. Não esqueçamos que a “operação” desenvolvida no Complexo do Alemão em junho de 2007 resultou na morte de 19 pessoas e quase uma dezena de feridos: massacre digno de um mini-campo de concentração moderno onde a suástica nazista cede lugar a uma “orgulhosa” e venerada figura de caveira.

A Polícia brasileira, Militar (PM) ou Civil (PC - também conhecida tecnicamente como Polícia Judiciária), tenha a função de prevenir, reprimir ou mesmo de investigar crimes, precisa tomar urgentemente o rumo da legalidade democrática, não podendo se constituir numa causa perdida (ZIZEK), embora as vezes tudo assim pareça, especialmente quando, por exemplo, um jovem de periferia perde a vida ao receber múltiplos disparos pelas costas simplesmente por ter ultrapassado uma barreira policial ao dirigir sem habilitação: caso da vítima Henrique, lembrada no pórtico do texto.

Investir na formação técnica, psicológica e humana dos agentes que fazem a operacionalização da segurança pública nas cidades e apostar na compreensão de que direitos humanos são conquistas de todos (inclusive policiais-bandidos, por mais que esses, uma vez julgados e condenados no crime ou improbidade administrativa, mereçam banimento e afastamento das corporações) precisa ser missão e compromisso engajado de um real programação nacional capaz de repensar o caminho da política de segurança pública.

E quem não quiser entender que a Polícia age em nome do Estado, que este, por sua vez, somente atua dentro da mais estrita e absoluta legalidade, melhor não só preparar o “BO” (Boletim de Ocorrência), como ajustar o espírito para enfrentar o duro banco dos réus, quando não a própria submissão à Júri Popular, palco democrático onde dificilmente sobra espaço para a impunidade.

Os dados indicativos de uma polícia verde-amarela fardada “que mata” mostram que a violência e visão que temos dela precisa estar em paralaxe, ou seja, colocada e compreendida a partir de uma mirada em perspectiva. Que o diga a “indústria da segurança” e as abomináveis e incontáveis “milícias”, poder paralelo que, tal como crime organizado, ocupa lacunas deixadas pela própria ineficiência ou desonestidade dos governantes.

De qualquer forma, é mais do que chegada a hora de prevalecer a cidadania e não se continuar permitindo que a polícia sobreponha-se aos limites da Justiça para aplicar “pena de morte”, seja ilegalmente nas cotidianas e covardes “subida” aos morros, seja até mesmo no “abate” (nome bem explicativo para definir que o “inimigo” não é visto de modo muito diferente que um animal) de uma simples aeronave clandestina carregada de “drogas” sobrevoando a Amazônia (ou, a propósito, alguém acha que a Lei 9.614/98 patrocinada na era FHC é constitucional?)

A Constituição brasileira, ao mesmo tempo em que garante a vida (artigo 5º), proíbe a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, conforme artigo 5º, XLVII. Quem sabe a violência policial tenha chegado no ponto crítico no qual infelizmente está porque, para muitos, a guerra já foi e está de fato “declarada”. Enfim, tudo pode ser uma questão de conceito (mais uma vez estamos no campo da linguagem). Que o digam alguns governantes e Secretários de Segurança, sempre ávidos por mais um holofote "eleitoreiro", mais uma manchete de jornal, personagens caricatos não raras vezes mais preocupados em maquiar a "fria" e desfavorável estatística com explicações prontas e mirabolantes do que efetivamente comprometidos em estabelecer foco crítico capaz de impedir a morte de novas vítimas.




Por trás de suas ações "espetaculosas", ternos, palavras de "ordem" e canetadas, mais do que reforço ao empoderamento, controle e participação popular na Conferência Nacional de Segurança Pública para construção de verdadeira e permanente política de segurança pública de Estado (não de governo), por vezes o que se tem é o próprio Estado refém da "representatividade" que determina e planeja agir sem rever métodos, mesmo sabendo e correndo o risco assumido de continuar empilhando e embalando as vítimas da sua própria tragédia.

Que possamos, na esteira da intelectualidade de ZIZEK (sempre ele), encontrar um significante-mestre (point de capiton) capaz de romper o estado de acomodação e a ausência de “choque” que, até aqui, tem amortecido a reação e entorpecido o poder de resistência (ou tolerância) da sociedade brasileira no tocante à violência praticada por agentes policiais. Construir cidadania e defender direitos humanos, não esqueçamos, também é combater violência.

Afinal de contas, na sempre lembrada vidraça da lei e ordem e suas “janelas quebradas”, a pior pedrada é justamente aquela que vem de dentro...