“Lembrei aos colegas o que se sucedera com o advento do nazismo na
Alemanha. Não podíamos ‘lavar as mãos’. Era preciso denunciar seja o sentido da
evolução política da ditadura, seja a maquinação contra a universidade e a sua
função crítica” Florestan Fernandes
1. Uma descoberta válida para se
refletir sobre a passagem de mais um aniversário de nossa sombria e abominável Ditadura
Militar e, ao mesmo tempo, atualizar a problematização do que se espera da universidade
brasileira, está na obra “A questão da USP”, do extraordinário sociólogo
Florestan Fernandes.
2. Não se trata aqui de falar dos
episódios recentes e polêmicos que envolveram a Universidade de São Paulo
tratados de forma um tanto quanto deturpada pelos meios de comunicação de
massa. O foco é outro, embora o produto também sirva para desnudar uma melhor e
mais crítica perspectiva sobre os referidos cenários, especialmente quando vige
uma governança bandeirante um tanto quanto afeita a “choques” de ordem em
detrimento da cidadania (e aqui poderíamos citar dois episódios de barbárie em 2012: “cracolândia” e Pinheirinhos).
3. O livro, que começa analisando a
Universidade de São Paulo no duelo entre mito e realidade, tem a importância de
descrever o processo de construção histórica da instituição desde o surgimento na década
de 30 até a formação dos seu primeiro cinqüentenário quando da publicação da
obra, ocorrida em 1984, já vinte anos depois da eclosão nefasta do regime
militar, situação que resultou na “antiuniversidade” como instrumento de normalização e
dominação, vícios ainda presentes de algum modo aqui e acolá tamanho o trauma
propiciado.
4. Muitas lições podem ser extraídas
da obra de Florestan Fernandes, não apenas a constatação do quanto as pessoas e
as instituições podem sucumbir pelo corporativismo, pânico e pelo discurso individualista do medo, quando não pela
covardia. Florestan deixa muito
clara a compreensão de que a inércia e a crise dos intelectuais orgânicos vinculados à
uma instituição-chave como é a universidade para o desenvolvimento do país pode
ser absurdamente nociva e prejudicial a construção do futuro. Como um desses
exemplos, cita o fato de Faculdade de Medicina da USP ter exigido a retirada daqueles que se insurgiam contra o regime para “preservação” do interesse coletivo,
o que faz Florestan em certo ponto afirmar que “os inimigos não se encontram
mais entre os adversários, mas nas próprias hostes dos companheiros”.
5. A obra deixa muito clara, na sua
fundamentação, a importância da universidade brasileira trilhar caminho próprio
e autêntico de modo a romper com o modelo europeu eurocentrista de colonização
do saber para se preocupar com os seus próprios problemas, com aquilo que a
realidade nacional coloca na rua, numa verdadeira “epistemologia do sul” (Boaventura).
6. Se é bem verdade que hoje não
temos mais Professores recitando cursos inteiros em francês ou latim, devido ao
contexto de mercantilização do ensino, do subfinanciamento das universidades
públicas, bem como da falta de processos seletivos adequados para captura dos
verdadeiramente vocacionados sob o ponto de vista ideológico para cumprimento
da função vital que se espera de um Professor, entre outros problemas, certo é que muitas
instituições e profissionais estão longe de representar a referência que se espera que uma universidade represente do
ponto de vista substancial e formativo para o crescimento do país.
7. Mais do que isso, a história narrada
por Florestan deixa evidente a importância dos intelectuais não subestimarem a
força de resistência que possuem, nem mesmo ignorarem o potencial que dispõem
para embalo e promoção de melhores e maiores transformações na sociedade. No episódio narrado, se é
bem verdade que faltou força (e coragem) à muitos que estavam “dentro dos
muros” da universidade para enfrentamento mais ostensivo e incisivo da ditadura
(e nesse contexto, muitos foram “ursos amestrados” a “dançar de um lado para o
outro” – como diz Florestan), não se pode negar o fato de que muito do período
mais duro foi protelado com posturas de critica e de enfrentamento, sendo que um
dos representantes mais legítimos desse grupo foi o próprio Florestan
Fernandes.
8. Numa das partes mais ricas do
livro, denominada “A Ilusão da História”, Florestan resolve dar de modo mais
direto seu testemunho, certo de que há um “dever de enfrentar essa recapturação
da memória”, afinal, a Ditadura Militar (que se denominava cinicamente
“Revolução” a pretexto de mobilizar “forças vivas da sociedade”), é uma verdade que "não pode ficar nas mãos dos que praticaram a repressão e deram o
golpe”, justamente por entender Florestan que uma universidade não vive só
de glórias e, ao contrário, (e com
o homem por vezes não é diferente), também “precisa de experiências amargas, de
sofrimento, de perseguições para enrijar e florescer”.
9. Neste capítulo do livro duas
histórias chamam atenção. Nelas Florestan demonstra a importância da coragem
intelectual de dizer e defender o que se pensa em nome do interesse coletivo.
10. A primeira se deu quando
Florestan, convidado e buscado pessoalmente pelo oficial Marechal Castelo
Branco, em 1962, para uma fala em curso
dirigido aos oficiais do Estado Maior do Segundo Exército, defendeu que ou o
ensino fechado militar deveria sofrer uma revolução ou deveriam os militares
freqüentar as escolas de ensino superior para calibração de talentos para que
pudessem desempenhar papéis em todos os setores institucionais da sociedade,
núcleo da exposição. Segundo o próprio Florestan, que um colega de mesa
presente na ocasião indagou se estava louco, “depois disso, nunca me convidaram
para mais nada“.
11. A segunda história se dá na
descrição dos recursos de intimação utilizados pelos militares em plena Ditadura, que incluíam diversos expedientes. Um deles era a promoção de buscas policiais de
pessoas de modo ostensivo em locais onde se sabiam essas não estar, não por uma
finalidade justa, mas simplesmente para gerar pânico. Outras estratégias iam da formação de listas dos
famigerados inquéritos policiais militar passando pela operacionalização do serviço de espionagem até a prisão pura e simples. Como diz Fernandes, “no fundo, o ‘pânico circular’ era o
grande objetivo”. Foi assim que, quando surgiu a “lista de expurgo”, listado para comparecer à inquirição,
limitou-se a apresentar uma carta de protesto (que segundo Florestan a ele era um “protesto anódino que estava longe de conter o que devia ser dito), situação
que não só rendeu sublinhados em vermelho de parte do oficial que lhe interrogou, como também a
resistência de Florestan até as últimas conseqüências em manter a sua postura,
mesmo sem nenhum apoio institucional, o que custou sua prisão, que somente se
estendeu por três dias por conta da mobilização de estudantes e do estrépito
gerado pela sua custodia. Nas palavras dele, depois de uma “conversa amarga”
com o Diretor da Faculdade, que pedia que este reconsiderasse sua posição e
retirasse o protesto, pois estaria pensando só nele e não na instituição, na
família, respondeu Florestan:
“Retruquei que não me cabia dar mau exemplo a assistentes e auxiliares.
(...) Os meus filhos, a minha esposa e a minha mãe vão ficar orgulhosos de mim,
aconteça o que acontecer, e eles já estão prevenidos. (...) Sou obrigado a
fazer o que faço porque a Faculdade se omitiu. Cabia à Faculdade repelir a
afronta desse inquérito policial-militar, não a mim”. Florestan entende que a
pior das tragédias seria a universidade ter que “comer no cocho da ditadura”, o
que para ele não podia ser feito, nem que isso custasse a liberdade.
12. Na obra, entre tantos ensinamentos, Florestan Fernandes demonstra como a Reforma
Universitária e a luta por mais espaço democrático e mobilização popular passou
a ser uma ameaça aos militares, o que exigiu que tivessem feito o que fizeram.
13. Em tempo de resgate da primavera
dos povos, de manifestações, de mobilizações, de indignados e movimentos de
ocupação nas praças e cidades, de se questionar quem é que representam quem ou o quê, é de se esperar que as instituições de ensino
superior, não só públicas, mas também privadas, cumpram com o seu papel social
e cultural que delas se espera. Aqui reside a grande vitalidade e atualidade do
texto de Florestan Fernandes.
14. A propósito, desde há muito que a
universidade não pode(ria) ser uma "instituição de ponta" feita “das elites
para as próprias elites”. Contudo, contraditoriamente a isso, num
enredo em que o financiamento da extensão e a inserção social das universidades
ainda é extremamente deficiente, não obstante existam pontuais e excepcionais bons
exemplos, de modo geral as políticas de ação afirmativa ainda não são uma
realidade obrigatória e consolidada em todo o território nacional, prova de uma
autonomia universitária que ainda é utilizada às avessas.
15. Refletir sobre até que ponto o impacto sentido pelas instituições do ensino a partir da experiência da regime militar serviu de experiência e
lição para explicitar o complexo e desafiador papel moral, social, político,
cultural e educacional a ser desempenhado pelo conjunto da universidade
brasileira é uma questão que precisa ser recolocada, inclusive no que diz respeito às questões e os reflexos históricos e jurídicos decorrentes desse período.
16. Como diz Florestan na introdução
de seu livro, num primeiro plano, espera-se que não só a USP, mas qualquer
outra universidade, especialmente se for pública, saiba manter uma relação
inconformista firme, ardente (e ao nosso ver permanente) com a “instauração de
uma ordem social verdadeiramente democrática”. Isso implica, muito mais do que
lembrar e trazer à memória o tempo triste da Ditadura Militar, na mobilização
para que as questões relacionadas ao interesse coletivo, tais como a absurda
anistia, até aqui vigente e chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, possam ser
revistas e discutidas com a profundidade e os atributos de espírito (e revolução) necessários.
17. Em tempos de quatro anos da crise do capitalismo no mundo, de um bilhão de pessoas passando fome, de escoamento de recursos públicos com a corrupção e com obras públicas realizadas em regime de exceção para megaeventos da "Copa do Mundo" e "Olimpíadas", fico pensando o que Florestan
Fernandes diria da aparente falta de mobilização nacional mais concatenada e efetiva da
comunidade universitário-acadêmica docente e discente quanto a esse e outros aspectos que ainda
perturbam a realidade nacional. No “busílis” da questão, expressão tão cara à
Florestan, parece estar, ainda, certa anestesia social quanto a compreensão desses problemas, bem como certa incapacidade de percepção e de reação de todos por
mudanças, por mais que essas possa estar sendo cada vez mais praticada por
iniciativas emancipatórias de uma contra-globalização (Boaventura) praticadas aqui e acolá num mundo ainda em transe (que também nos faz sentir saudade do cinema de Glauber).
18. Encerrando com esperança, que precisa habitar e residir muitos lugares "não comuns", especialmente o campo da universidade, que fique patente que o período de trevas serviu mesmo “para limpar o horizonte intelectual” da
comunidade acadêmica e, via de conseqüência, “desvendar uma consciência mais realista, crítica,
responsável, exigente e democrática do que deverá ser a universidade em um país
pobre e atrasado como o Brasil”. A
“Questão da USP” foi escrito em 1984, mas de lá para cá nada mudou. Como bem
adverte o corajoso e singular Florestan, “fatos são fatos”.