domingo, 26 de julho de 2009

Engajamento em tempos de crise: quem nos "salva"?


O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fazem de nós. Jean-Paul Sartre


Poucos são os que se dedicam a agir de modo livre sobre problemas concretos da existência nos sombrios tempos pós-modernos, cada vez mais escassos para a reflexão, transformações e verdadeiras mudanças.
Nesse contexto, reclamar um novo projeto coletivo para se “viver junto” ainda parece algo distante, especialmente quando o consumo oprime, quando o regime de trabalho capitalista escraviza o "conviver", limita o "agir" e priva de substância o "pensar".

Falta de efetiva participação, ausência de compromisso e engajamento, viciado estado de coisas não pode ser definitivo, constatações capazes de exprimir o falido sistema neoliberal, exterminador de subjetividades e possibilidades de um mundo melhor e mais justo.

Romper zonas de conforto e acomodação, sair do egoísmo para atingir um grau maior de coesão e solidariedade, examinar com olhos críticos os acontecimentos históricos, políticos e sociais do nosso tempo, talvez aí resida parte do grande desafio, receita para tempos de crise, exceção e emergência.

Mais do que nunca, é preciso romper o campo imaginário para atingir ações concretas. A fórmula é velha, sabemos a receita para a prática necessária, mais ainda nos falta matéria-prima e ingredientes...
Lutar por políticas públicas educacionais efetivas que assegurem informação, forjem consciência e permitam concreta atuação: único e irremediável caminho.

Velhas necessidades para novos tempos, surdas promessas vazias para o deleite de governantes "silenciosos", omissos traidores do povo na sua vontade geral.

Existência, liberdade e alteridade, a propósito, eis as três grandes etapas da ideologia sartreana.
Ter consciência de ser-no-mundo, agir livre e criticamente, encontrar espaços e preencher lacunas de uma cidadania ainda vazia: missão para a existência.

Ser responsável pela permanente construção do caminho, da opção permanente na busca da melhor escolha, na procura do sentido à vida sem culpa, com seus riscos, perdas e ganhos: este o sentido da verdadeira liberdade.
Estabelecer relação de respeito e reciprocidade entre eu e o outro: tarefa para alteridade.
A única certeza é que estamos condenados a ser livres por mais que nos tempos atuais pensar nisso ainda pareça rematada utopia.

O processo de “maquinização” e a irrefletida existência parece deixar pouco espaço para crescimento da noção de participação, compromisso e engajamento, qualidades e sentimentos tão caros para que tenhamos uma verdadeira e material democracia capaz de concretizar direitos humanos.

Democracia participativa que, aliás, precisa existir com liberdade para que o espaço seja ocupado de modo legítimo pela sociedade, o “outro” que os governos teimam em não respeitar.

Será que estamos "comprometidos"?

Engajamento em tempos pós-modernos, um conteúdo a se buscar... quem nos “salva”?

sábado, 11 de julho de 2009

“Arte para crianças” (e adolescentes): lição do Estatuto da Criança e Adolescente, de Walter Benjamin e de Evandro Salles


Trata-se do preconceito segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente inventivos para distrai-las. Em seu preconceito, eles não vêem que a terra está cheia de substâncias puras e infalsificáveis capazes de despertar o interesse das crianças” Walter Benjamin

Para se ter acesso a conhecimento, cultura e arte, realmente não deveria existir tempo, preço ou idade. Para atender e fazer observar direitos fundamentais e humanos de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito igualmente não poderiam faltar recursos, consciência e vontade. A realidade e o senso comum, porém, teimam em pensar e fazer diferente.

Apresentar e disponibilizar o mundo da arte ao universo infantil, permitir construção de cidadania e formação de espírito crítico a seres especiais em peculiar condição de crescimento e desenvolvimento sem dúvida contempla os princípios e as premissas da doutrina da proteção integral que os constituintes representantes do povo brasileiro tanto quiseram ver observadas quando da edição da Constituição da República em 1988 e, ano seguinte, na promulgação do Estatuto da Criança e Adolescente, por mais que isso por vezes pareça uma grande e fantástica quimera.

Pois bem, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) está prestes a completar 19 anos de aniversário no próximo dia 13 de julho e, infelizmente, muitas de suas premissas ainda são promessas e vazias retóricas, dentre as quais acesso ao conhecimento, lazer e cultura, dentro ou fora do ambiente escolar, inclusive no específico campo da arte.

Os motivos são muitos e abrangem certamente a falta quantitativa e qualitativa de políticas públicas eficientes, especialmente porque o orçamento voltado exclusivamente para criança e adolescente dos Municípios, Estados e da União, de forma mais aguda ainda no campo da cultura, ainda está muito distante de cumprir com os comandos constitucionais da prioridade absoluta (artigo 227 da CR) e destinação privilegiada e preferencial de recursos públicos (artigo 4º do ECA), inclusive para garantir acesso e conhecimento num elo fundamental: criança, juventude e arte.

Sendo assim, ideal seria se a sociedade política e civil direcionasse esforços para aproximar o universo e a linguagem da arte a crianças e adolescentes, pois, quem sabe assim a pátria do futuro poderá sonhar e acordar num mundo mais próspero e pleno de verdadeira e emancipadora cidadania, sentimento último que não pode ficar associado à criança e adolescente apenas uma vez por ano, quando da divulgação de determinado e específico programa “global”, "lembrado" talvez para esclarecer o grande "esquecimento" do tema nos outros 364 dias, especialmente quando as finalidades informativas, educativas, culturais e sobretudo artísticas dos meios de comunicação não rompem a tinta do artigo 221 da Constituição da República.

Dentre tantas carências materiais e intelectuais de um país que ainda busca um verdadeiro projeto, um dos novos caminhos civilizatórios pode passar pelo atrelamento da criança e adolescente a uma das maiores expressões de cultura a ser usufruída pela humanidade: a arte.

Sobram motivos para que assim se entenda. Primeiro, porque arte é não só uma forma de compreensão da história do passado, presente e futuro do mundo, como, sobretudo, liberdade e possibilidade de protagonismo, de opinião e expressão (artigo 16, II, do ECA), especialmente para os sujeitos de direito que já tiverem habilitados a participarem da vida política do país, que tanto precisa de novas caras, siglas, signos, símbolos e energias (artigo 16, VI, do ECA). Segundo, porque se o conceito de saúde contempla o bem-estar em todas as formas, e se crianças e adolescentes têm direito de proteção nesse aspecto (artigo 7º do ECA), ingressar no caleidoscópio das possibilidades do rico universo artístico é abrir portas e janelas para o mundo, comunicar e bricolar novos significantes e significados no caminho e no novelo da linguagem, como bem ensina Alexandre Morais da Rosa, ainda que falando de outro assunto. Terceiro, porque garantir acesso e participação da criança e jovem em atividades artísticas é assegurar educação que permita pleno desenvolvimento da pessoa, prepará-la para exercício da cidadania e, quem sabe, para o próprio trabalho, como bem diz o artigo 53 do mesmo ECA. Quarto, porque garantir acesso à arte é permitir e concretizar direito à informação, cultura e lazer assegurado pelo artigo 71 do mesmo ECA. Some-se isso tudo à idéia e previsão expressa de que as crianças e adolescentes devem dispor dos mesmos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (artigo 3º do ECA) e será difícil encontrar resposta para: 1) o fato dos equipamentos públicos (ex: museus, parques, etc), de modo geral, não guardarem a devida atenção para a importância da arte no desenvolvimento e educação infanto-juvenil; 2) o currículo escolar e profissional, da educação infantil ao ensino superior, não estar atento à necessidade de maior valorização da arte na sua articulação com a educação e as políticas públicas; 3) a constatação de que a iniciativa privada, o terceiro setor e as organizações não-governamentais, enfim, a sociedade em geral, não estão atentos e verdadeiramente despertos para valorizar a importância e a verdadeira "revolução" que pode ser para uma criança e adolescente acessar, experimentar, vivenciar e mesmo produzir arte sob todas as suas múltiplas formas e infinitos conteúdos.

Que logo isso tudo possa mudar e que o Estatuto da Criança e Adolescente, que já passou um ano da sua maioridade, possa ganhar cores mais vivas no direito achado (e encontrado) na rua, como quer Boaventura Santos, pois só assim esta preciosa legislação será conhecida, compreendida e respeitada pela sociedade e, sobretudo, pela hoje desacreditada classe política. A otimização da efetividade do Estatuto enquanto lei certamente contribuirá para reforçar a importância, o patrimônio e o legado extraordinário da experiência artística na formação pedagógica, no acesso ao conhecimento e na incessante busca de maior participação cívica- cidadã e pensamento crítico de parte de nossas crianças e adolescentes.

Nesse contexto, oportuno homenagear Evandro Salles, sua equipe e os mentores do maravilhoso Projeto “Arte para Crianças” que, sem pretensão de "infantilizar" a arte, não raras vezes vista como mercadoria de poucos privilegiados, percorreu algumas capitais brasileiras (São Luis, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo...) enfatizando importância da partipação, do protagonismo e da valorização e contribuição linguística e auto-explicativa da arte para o universo desta pequena gente-sujeito que, por incrível que pareça, nas palavras do próprio artista, constitui um público hoje quase totalmente impedido de assim proceder no seu âmbito. Ou seja, na restrição quando não impossibilidade do desfrute da arte pela criança e jovem, encontramos mais uma moratória infanto-juvenil perdida no baú das possibilidades.

Que os tempos possam mudar e que venha a necessária conscientização para que as famílias, as escolas, os museus e os mais variados espaços públicos e privados saibam valorizar e entender que através da arte com crianças (e adolescentes) é possível construir um novo e melhor futuro, uma verdadeira língua própria que muito contribuirá para o crescimento e desenvolvimento sadio e digno de nossas crianças e adolescentes, da sociedade do futuro.

A propósito, como bem ensina o artista suíço Paul Klee, segundo o qual a arte não reproduz o visível, mas torna visível, tendo em vista que a arte não serve para copiar as coisas que já existem, mas para criar as que ainda não existem, lembrado pelo talentoso Evandro Salles, talvez por isso que certamente muitos políticos, governantes e empresários deste país (que está longe de ser realmente de todos no acesso à cultura) ainda não querem investir ou mesmo acreditar na arte para (e com) crianças e adolescentes, horizonte que precisa urgentemente mudar, no concreto e no imaginário.

Afinal, nada melhor ou mais animador para embalar a esperança (e o sonho) de um mundo melhor e mais justo do que a combinação de uma criança e um adolescente fundidos na visão, no olhar, na escuta, na fala ou no silêncio de uma obra de arte...para pensar, criar e, sobretudo, transformar, ação última do Estado Democrático de Direito idealizado pela Constituição que não pode ficar para sempre adormecida.

E para quem, a estas alturas, ainda achar que arte é assunto de adulto, que criança e adolescentes ainda são tão objetos como uma simples e para muitos "incompreensível" obra de arte moderna ou pós-moderna, nada melhor que voltar a lembrar o valoroso Evandro Salles: A dimensão da arte é atemporal e sem gêneros. Como no que diz respeito às faculdades de pensar, ver ou falar, na arte não existem distinções dessa ordem. Todo ser humano indistintamente detém tais faculdades, e seu acesso a elas é irrestrito, desde que estejam asseguradas suas condições de desenvolvimento. Para que alguém viva a experiência da arte, basta que tenha um contato adequado e direto com os objetos que a engendram.
Parabéns ao Estatuto da Criança e Adolescente, na expectativa de que este constitua-se cada vez mais num instrumento de aquisição de direitos, de respeito à participação e protagonismo de crianças e adolescentes, tão ricas de alegria, mistérios, curiosidade, significados e significantes, territórios desconhecidos (Warat), verdadeiras obras de arte...

sábado, 4 de julho de 2009

Negativa oficial de voto ao preso provisório na ótica do TRE-SP: "conversa de clube" ou simples violação do art. 15, III, da Constituição?


“Os espelhos estão cheios de gente. Os invisíveis nos vêem. Os esquecidos se lembram de nós. Quando nos vemos, os vemos. Quando nos vamos, se vão?” Eduardo Galeano (Espelhos)

Não bastasse o seu campo não raras vezes simbólico e imaginário, forçoso constatar que fração da Justiça Eleitoral brasileira, por conta de resultado de julgamento realizado pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), no último 16 de junho de 2009, perde mais uma significativa e franca possibilidade de ganhar um pouco mais de credibilidade e afirmação social em prol da concretização de direitos humanos fundamentais.

Após elogiável representação formulada pelo diligente representante do Ministério Público Eleitoral, na pessoa do Procurador Regional Eleitoral oficiante junto à referida Corte Eleitoral paulista, basta perceber o teor e a fundamentação das decisões e votos “vencedores” para constatar como é fácil no sistema jurídico brasileiro negar direito fundamental e derrotar a Constituição e a substancial democracia por trás da “burocracia” e, pior de tudo, do “preconceito” e “higiene” de classe.

Com uma linha de argumentação absolutamente reacionária e absurdamente preconceituosa, de baixíssima densidade jurídica e social, o referido Tribunal Eleitoral, por maioria, entendeu por bem em oficializar, mais uma vez, a negativa de um direito expresso, líquido e certo garantido pela Constituição da República de 1988 que, ao suspender direitos políticos do preso com condenação transitada em julgado (em relação a qual não cabe mais recurso), obviamente assegurou e contemplou tal direito fundamental de cidadania ativa aos presos provisórios. A despeito disso, sempre bom lembrar que segundo o artigo 15 da Constituição da República, somado ao seu inciso III, é vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de (...) condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”.

Difícil imaginar que uma macroestrutura excessivamente onerosa como a Justiça Eleitoral, de trabalho periódico e praticamente bianual (Eleições a cada dois anos) e com volume de atividades infinitamente inferior ao destinado cotidiana e permanentemente aos demais ramos do Judiciário (onde muitas vezes falta mínima estrutura para garantir acesso qualitativo e célere ao desejo de Justiça), ao invés de se preocupar em maximizar meios de disponibilizar sua estrutura à serviço da democracia (incluída a disponibilização de equipamentos para eleições não-oficiais como de Conselheiros Tutelares), prefira o “conforto” e a “comodidade” da estagnação pífia que, ao negar direito humano fundamental de voto do preso provisório, ao violar garantia de cidadania e capacidade eleitoral ativa prevista pela Constituição, contribui para distanciar e desacreditar o Judiciário perante a sociedade, fato já constatado em diversas e recentes pesquisas de opinião.

Ouvir o áudio da sessão de julgamento do TRE sobre o tema em questão serve para evidenciar e demonstrar como pode ser preocupantemente baixo o senso e sentimento de constitucionalidade a julgar pela natureza e qualidade dos argumentos por vezes invocados pelo Judiciário brasileiro. Escutar o teor do julgamento em questão é a prova preocupante pronta e acabada de que não raras vezes argumentos reacionários e absolutamente menores servem de justificativa oficial à negação de um direito fundamental, o que muitas vezes não é objeto de conhecimento da sociedade ou divulgação da grande mídia.

Elogio mesmo merecem o Procurador Regional Eleitoral que propôs a medida e o único e solitário Juiz Eleitoral que, no enfrentamento do tema, entendeu e preferiu determinar o cumprimento da Constituição em lugar de apresentar supostas dificuldades operacionais para efetivação de uma medida cuja falta de implementação, por si só, considerando o tempo decorrido (passados mais de 20 anos da Constituição e muitas Eleições), já deveria ser motivo da mais absoluta vergonha.

A infeliz incapacidade de transformar a Constituição em realidade materializada pelo julgamento do TRE-SP é cotidianamente vivenciada num Judiciário brasileiro que, por vezes, parece viver intensa crise de funcionalidade, que inclui tanto necessidade de reflexão sobre a seleção e formação dos seus magistrados (incluidas as Cortes Eleitorais), como também sugere necessidade de se discutir o reduzido grau de efetividade e celeridade no processamento das tutelas coletivas, Poder Judiciário nacional que, por vezes, parece incapaz de desempenhar um simples e fundamental papel: observar e fazer cumprir a Constituição (tarefa que deve valer apenas para o Executivo e Legislativo, mas também precisa vincular a próprio Judiciário enquanto poder do Estado Democrático de Direito).

Pior de tudo é ter de ouvir magistrado eleitoral justificando a impossibilidade prática da medida de se assegurar voto aos presos provisórios sob o argumento da existência de uma “série de coisas constitucionais que não se aplicam”, como consta do próprio precedente. Igualmente preocupante é escutar sustentação de que a discussão em pauta a partir da representação feita revelaria “colidência de direitos”, pois no artigo 15, III, da Constituição haveria um direito que não seria exeqüível na sua totalidade em virtude do direito de segurança da sociedade que, no caso, supostamente impediria a possibilidade de exercício do voto ao preso provisório.

Duro de ouvir argumento de autoridade de que assim se faz ou assim se vota com a pseudo e implícita experiência e sabedoria de quem acompanha eleição “desde o tempo das cédulas”, quando talvez melhor e mais verdadeiro fosse reconhecer adormecimento de consciência no passado anterior à própria Constituição de 1988, no que se inclui a dívida histórica de quase quatro séculos de escravidão e aproximadamente vinte cinco anos de Ditadura Militar.

Terrível, ainda, ouvir Juiz Eleitoral justificar seu posicionamento de vedação de voto ao preso provisório sob argumento de que esta situação cumulada com a parcial obrigatoriedade do voto seria uma espécie de incentivo ao "voto de protesto", raciocínio que, segundo confessado pelo próprio magistrado, teria sido extraído de uma consulta que este afirmou certa vez ter feito com pessoas do seu mesmo nível social, curiosamente feita em um clube (quem sabe de tênis ou golfe, desses esportes mesmo que só a elite costumeiramente pratica). Segundo o mesmo Juiz, na sua aparente “cegueira” (ou seria "treva branca"?) interpretativa, não haveria sequer garantia e direito fundamental ao preso provisório votar, pois isso não estaria expresso na Constituição.

Complicado, ainda por cima, ter de ouvir questionamentos do tipo “em quem o preso vai votar?”, preocupação que, se vale para o sujeito privado da liberdade, pode ser estendida à sociedade brasileira como um todo, risco inerente à própria democracia que, obviamente, não pode ser invocado apenas para determinada categoria de pessoas hipossuficientes e em situação de vulnerabilidade. Afinal de contas, não é preciso muita perspicácia e luz para perceber que a mesma ideal restrição de “liberdade” eleitoral incide não apenas para o preso, como também invade potencialmente todos os rincões e bolsões de pobreza e miserabilidade do nosso país, onde a influência, a cooptação e a captação ilícita do sufrágio ainda ocorrem nas barbas e nos olhos da, por vezes literalmente "cega" (ou seria simplesmente daltônica?), Justiça Eleitoral, a quem ainda falta ideal estrutura de organização, fiscalização e efetividade para fazer valer a democracia substancial.

Verdadeiramente abominável ouvir o áudio da sessão e perceber que determinado Juiz, talvez para suprir o seu excessivo esvaziamento ou despreparo técnico-jurídico para discussão constitucional do tema, tenha preferido destilar veneno ironizando o Estado do Rio Grande do Sul, espaço no qual já houve experiência positiva para o voto dos presos provisórios, magistrado esse que, aliás, demonstra curiosa e profunda ignorância com o direito alternativo e, inclusive, com a própria hermenêutica.
Talvez para o referido julgador interpretar a lei como se quer ou, em suas palavras, contornar a lei, somente deva ser uma opção legítima e válida para negar a Constituição, nada mais. Segundo este mesmo Juiz eleitoral, garantir a concretização de direito fundamental aos presos provisórios seria o mesmo que “dar direito aos piores”, o que realmente encerra a possibilidade de se continuar querendo fazer qualquer compreensão mais democrática e imparcial do seu relato, afinal, o próprio magistrado, em seu voto, em certo momento reconheceu estar vendo caso pelo conceito (ou seria pré-conceito?).

De outro lado, alegar que “preso não votaria bem”, justamente por não dispor de acesso à informação e propaganda eleitoral, soa como uma cínica ironia, não só porque aos analfabetos é assegurado a facultatividade do voto, como bem apontado pelo valoroso julgador vencido na oportunidade, mas também considerando (e aqui o fundamento é nosso), que a Corte Eleitoral em questão está situada justamente no Estado da Federação que exemplificativamente elegeu os “polêmicos” Paulo Maluf e o falecido e exótico estilista Clodovil para a Câmara Federal dos Deputados.
Talvez seja justamente pelo fato de o direito de voto do preso provisório estar esquecido numa verdadeira "arca perdida", que a execução e os estabelecimentos penais brasileiros são a verdadeira expressão da barbárie, estado de exceção (AGAMBEN) permanente que nega cumprimento à Constituição, solidifica a ausência do Estado e, aí sim, permite o nocivo desenvolvimento de organizações criminosas sob a “roupagem” de partido voltado aos interesses da massa e comunidade carcerária.

Difícil acreditar que haveria “enorme dificuldade para fazer presos provisórios votarem” nas Eleições de 2010, especialmente para um Judiciário brasileiro que já teve, no seu quadro, juízes como a saudosa Professora Cleusa Mariza Silveira de Azevedo, que durante todo seu tempo de vida, na jurisdição, na sala de aula e em diversos eventos de execução penal, sempre foi uma briosa e corajosa defensora do direito de voto e protagonismo aos presos provisórios que, talvez para desespero de muitos, pela Constituição, tiveram sim assegurada sua capacidade eleitoral ativa, o que também, no caso concreto, foi acertado e elogiável entendimento do Procurador Regional Eleitoral Luiz Carlos dos Santos Gonçalves e do Juiz Eleitoral Walter de Almeida Guilherme.

A única enorme e insuperável dificuldade, no caso, parece ser que o Tribunal Regional Eleitoral (e outros que eventualmente possam comungar do mesmo entendimento) respeitem a Constituição e a façam cumprir deixando de lado argumentos absolutamente reacionários e preconceituosos. Tem-se no caso do TRE-SP mais um lamentável precedente que coloca óbices operacionais à frente da Lei Maior, situação que somente pode encontrar alguma "explicação" na interdisciplinaridade circular de outros campos do conhecimento, quem sabe filosofia, sociologia e psicologia.

Quem quiser conferir que o referido julgamento que, embora não pareça, constitui fato lamentavelmente verídico, fique à vontade (ou não) para acessar o áudio da sessão (http://s.conjur.com.br/dl/julgamento-tre-sp-di.mp3 ou mesmo verificar um dos votos “vencedores” (http://s.conjur.com.br/dl/voto-baptista-pereir.pdf), tudo para que, desse histórico, cada leitor extraia suas próprias conclusões e recortes críticos. Afinal, este breve ensaio não passa da fantasia de se tentar exercitar a lição deixada por Saramago, a responsabilidade de ver, nada impedindo que, democraticamente, alguém possa, como sugerido por um dos Juízes do caso, preferir conversar sobre o tema, de preferência, claro, apenas “com pessoas do nosso nível, não jurídico, mas nosso nível social, num ambiente social, evidentemente, num clube (...)”.