“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei deste acontecimento (...)
Nunca me esquerecei que no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade
Encontrar o Direito no caminho da Justiça é tarefa que exige interpretação e compreensão de normas (regras e princípios) em nome de plurais sentidos, tarefa valorativa de escolha, que até pode ser pretensamente imparcial sob o ponto de vista objetivo, nunca subjetivamente neutra. Declarar e extrair sentidos, mais do que cega e determinista representação própria de um pobre silogismo, precisa constituir ato técnico e, sobretudo, motivado, forjado, de preferência, longe do senso comum teórico e dos grilhões dos sedativos entendimentos ditos dominantes, herdeiros da mítica (e enganosa) segurança jurídica. Como ato humano que é, obviamente que essa difícil missão não está longe do erro, dos vícios, muito menos da discussão do questionamento, do pensamento, inclusive dos limites democráticos das escolhas feitas... Estudar e compreender a compreensão e aplicação da lei como fenômeno é missão para a hermenêutica, a ciência da interpretação.
Assim, superada a equivocada ideia de que a interpretação se encerra míope e univocamente no texto da lei (quando dele apenas parte e começa), a busca dos muitos significados e universos possíveis, além de grande aventura no campo do saber, talvez seja uma das maiores provas de que o Direito é um produto eminentemente cultural e, como tal, sempre aberto ao espírito livre para pensar e refletir criticamente sobre novos paradigmas, suas muitas verdades, especialmente aquelas capazes de interferência positiva e significativa na realidade, notadamente quando tem a possibilidade de serem peremptórias e definitivas.
A propósito, no permanente desafio de se interpretar bem a lei (ou o que mais se parece com ela nos seus requisitos essenciais), é o balanceamento e equilíbrio de um conjunto de variáveis que será determinante para uma boa ou má trajetória, que, definitivamente, passa longe por uma misteriosa e enganosa busca de uma vontade etérea (e sempre invisível) do legislador: a maldita “mens legis”.
Quem tem que interpretar e se posicionar é o intérprete, aqui e agora, no horizonte e na constelação da sua consciência com as ferramentas técnicas e intelectuais que dispõe, pois é desta aplicação que há o verdadeiro encontro do sujeito (intérprete) com o objeto (norma), verdadeira e inexorável simbiosa entre a teoria e a prática, desafio constante da ciência...(que, claro, como ensina EDGAR MORIN, não se faz sem “consciência”, sem uma ética voltada para valores da humanidade). Qualquer outra influência que não a convicção e a consciência é perniciosa, quando não propriamente ato desonesto da maior multiplicidade...
Como ensina PAULO QUEIROZ, tal como na arte e na música, o compromisso de se interpretar passa por uma dose de talento, ainda que o peso decisivo esteja com a vontade (quando não “desejo” psicanalítico) de se obter o justo, sucesso que depende do foco e da sensibilidade da lente através da qual este objetivo é buscado. Mais do que talento, vontade e sensibilidade, a segurança do caminho a seguir depende do que se sabe, passa pelo conteúdo do que se acredita, do que se quer intimamente buscar...ainda que isso jamais possa se constituir em blindagem para que se possa dizer tudo sobre qualquer coisa de modo livre de conseqüências, especialmente quando o fim visado constitui uma escolha ou verdadeira troca impossível (BAUDRILLARD).
Quando inexiste esta vontade de justo ou quando pré-compreensões viciadas influenciam a vontade de se produzir resultado de julgamento num determinado sentido, quando está ausente espaço e possibilidade democrática para encontro dialógico de minha convicção com o pensamento e questionamento alheio, aí começam os problemas...
Nesse panorama, descobrir a hermenêutica, na teoria e prática, nada mais é do que adquirir habilitação e instrumentos para o desvendamento e revelação de novos rumos e paradigmas, pressupostos para a busca de emancipatórios horizontes de compreensão e de sentido.
Nessa árdua missão interpretativa, a única certeza que se tem é o que esse sonhado e esperado justo, além de uma boa lei, passa por interpretar bem, especialmente quando se tem a única (ou a última chance de assim fazer), quando o horizonte de sentido escolhido pode enterrar um resultado juridicamente definitivo.
Por falar em interpretação e hermenêutica nesses termos, está mais do que na hora de se discutir a capacidade de julgamento do Supremo Tribunal Federal por decisões recentes (v.g, 1 - lei abusiva que permite a privatização e exploração do petróleo como riqueza natural; 2 - na distinção absurda feita entre cargos comissionados “de primeiro escalão” e de “agentes políticos” que permitiria tolerância ao nepotismo; 3 - em violações explícitas aos direitos de trabalhadores na nova Lei de Falências e Recuperação Judicial; 4 - ideia de que a gestão democrática do ensino público é incompatível com eleições diretas nas escolas públicas por questões burocráticas e atreladas puramente à iniciativa, e tantas outros precedentes mais...).
Como exemplo cabal do problemático e desabonador histórico recente do STF, que dizer então do “entendimento” adotado recentemente pela Corte Constitucional brasileira dando a entender que a “justa causa” no exame de denúncia contra réus que detém foro privilegiado (ex: ex-Ministro Palocci e o escândalo da quebra de sigilo do “caseiro”) pode se confundir com o mérito ao ponto de cercear atribuição constitucional do Ministério Público como titular da ação penal (artigo 129, I, do CR) e permitir negativa de vigência de disposição constitucional cuja força normativa (HESSE) precisa valer para todos e não apenas para clientes costumeiros da seletiva agência penal? Impedir pura e simplesmente a possibilidade da apuração de uma denúncia, da produção democrática de provas sobre ela dentro do devido processo legal, aliás, não é o que, guardadas as proporções e a transferência de esferas, fez a Comissão de Ética do próprio Senado Federal no “caso Sarney”, situação que mereceu tanto alarde e badalação da grande mídia?
Se é bem verdade que a hermenêutica pode estar em crise, que interpretar bem passa pela renovação e qualificação do ensino jurídico, pela superação da cultura positivista no caminho da interdisciplinaridade, talvez esteja na hora de se entender que interpretar bem a Constituição também passa pelo direcionamento de maior foco crítico a julgamentos concretos recentes do STF enquanto Corte Constitucional, na ótica e no arco-íris da linguagem...
Preocupante quando a “pedra no meio do caminho” (v.g, da concretização do princípio republicano da responsabilidade na esfera da persecução penal) é colocada por Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal, mínima e necessária reflexão que não pode deixar os fatos caírem no esquecimento...especialmente se formos buscar a raiz e a origem das coisas.
Afinal, como ensina LÊNIO STRECK, não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa e, por maior que seja a artimanha ou a retórica do discurso, até mesmo para a interpretação existem limites, especialmente no exercício da jurisdição constitucional pelo “monastério dos sábios”, que precisa estar sob o permanente crivo da capacidade crítica de todos nós enquanto “seres-aí”, pois a maior prova de “inautenticidade” (HEIDEGGER) de algumas soluções do STF precisa ser dada pela própria sociedade (e o aprendizado e as expressões aqui referidas são fruto da permanente interlocução com ALEXANDRE MORAIS DA ROSA[1]).
Alguém precisa “transcender” as portas e as “pedras” nos julgamentos do STF....(e aqui no “simbólico” talvez a melhor imagem dedutiva seja “Stonhendge”).
Nesse contexto, é de se perguntar como e quem pode consertar a chaminé da “usina jurisprudencial” do STF em um Poder Judiciário cuja cúpula está mais preocupada e “comprometida” (quando não intencionalmente alienada) com a fria e estatística observância de metas quantitativas e de rasteira “eficiência” em detrimento da interpretação e da melhor hermenêutica, de qualidade nos julgamentos? Isso, porém, já é assunto para outra e separada conversa... Para desespero nosso (e certamente do saudoso e genial DRUMMOND), existem outras muitas “pedras” no meio do caminho da Justiça, da interpretação e da hermenêutica, infelizmente...
[1] Vide Decisão Penal: bricolage de significantes. Capítulo 8, especialmente parágrafos sete e oito.
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei deste acontecimento (...)
Nunca me esquerecei que no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra”
Carlos Drummond de Andrade
Encontrar o Direito no caminho da Justiça é tarefa que exige interpretação e compreensão de normas (regras e princípios) em nome de plurais sentidos, tarefa valorativa de escolha, que até pode ser pretensamente imparcial sob o ponto de vista objetivo, nunca subjetivamente neutra. Declarar e extrair sentidos, mais do que cega e determinista representação própria de um pobre silogismo, precisa constituir ato técnico e, sobretudo, motivado, forjado, de preferência, longe do senso comum teórico e dos grilhões dos sedativos entendimentos ditos dominantes, herdeiros da mítica (e enganosa) segurança jurídica. Como ato humano que é, obviamente que essa difícil missão não está longe do erro, dos vícios, muito menos da discussão do questionamento, do pensamento, inclusive dos limites democráticos das escolhas feitas... Estudar e compreender a compreensão e aplicação da lei como fenômeno é missão para a hermenêutica, a ciência da interpretação.
Assim, superada a equivocada ideia de que a interpretação se encerra míope e univocamente no texto da lei (quando dele apenas parte e começa), a busca dos muitos significados e universos possíveis, além de grande aventura no campo do saber, talvez seja uma das maiores provas de que o Direito é um produto eminentemente cultural e, como tal, sempre aberto ao espírito livre para pensar e refletir criticamente sobre novos paradigmas, suas muitas verdades, especialmente aquelas capazes de interferência positiva e significativa na realidade, notadamente quando tem a possibilidade de serem peremptórias e definitivas.
A propósito, no permanente desafio de se interpretar bem a lei (ou o que mais se parece com ela nos seus requisitos essenciais), é o balanceamento e equilíbrio de um conjunto de variáveis que será determinante para uma boa ou má trajetória, que, definitivamente, passa longe por uma misteriosa e enganosa busca de uma vontade etérea (e sempre invisível) do legislador: a maldita “mens legis”.
Quem tem que interpretar e se posicionar é o intérprete, aqui e agora, no horizonte e na constelação da sua consciência com as ferramentas técnicas e intelectuais que dispõe, pois é desta aplicação que há o verdadeiro encontro do sujeito (intérprete) com o objeto (norma), verdadeira e inexorável simbiosa entre a teoria e a prática, desafio constante da ciência...(que, claro, como ensina EDGAR MORIN, não se faz sem “consciência”, sem uma ética voltada para valores da humanidade). Qualquer outra influência que não a convicção e a consciência é perniciosa, quando não propriamente ato desonesto da maior multiplicidade...
Como ensina PAULO QUEIROZ, tal como na arte e na música, o compromisso de se interpretar passa por uma dose de talento, ainda que o peso decisivo esteja com a vontade (quando não “desejo” psicanalítico) de se obter o justo, sucesso que depende do foco e da sensibilidade da lente através da qual este objetivo é buscado. Mais do que talento, vontade e sensibilidade, a segurança do caminho a seguir depende do que se sabe, passa pelo conteúdo do que se acredita, do que se quer intimamente buscar...ainda que isso jamais possa se constituir em blindagem para que se possa dizer tudo sobre qualquer coisa de modo livre de conseqüências, especialmente quando o fim visado constitui uma escolha ou verdadeira troca impossível (BAUDRILLARD).
Quando inexiste esta vontade de justo ou quando pré-compreensões viciadas influenciam a vontade de se produzir resultado de julgamento num determinado sentido, quando está ausente espaço e possibilidade democrática para encontro dialógico de minha convicção com o pensamento e questionamento alheio, aí começam os problemas...
Nesse panorama, descobrir a hermenêutica, na teoria e prática, nada mais é do que adquirir habilitação e instrumentos para o desvendamento e revelação de novos rumos e paradigmas, pressupostos para a busca de emancipatórios horizontes de compreensão e de sentido.
Nessa árdua missão interpretativa, a única certeza que se tem é o que esse sonhado e esperado justo, além de uma boa lei, passa por interpretar bem, especialmente quando se tem a única (ou a última chance de assim fazer), quando o horizonte de sentido escolhido pode enterrar um resultado juridicamente definitivo.
Por falar em interpretação e hermenêutica nesses termos, está mais do que na hora de se discutir a capacidade de julgamento do Supremo Tribunal Federal por decisões recentes (v.g, 1 - lei abusiva que permite a privatização e exploração do petróleo como riqueza natural; 2 - na distinção absurda feita entre cargos comissionados “de primeiro escalão” e de “agentes políticos” que permitiria tolerância ao nepotismo; 3 - em violações explícitas aos direitos de trabalhadores na nova Lei de Falências e Recuperação Judicial; 4 - ideia de que a gestão democrática do ensino público é incompatível com eleições diretas nas escolas públicas por questões burocráticas e atreladas puramente à iniciativa, e tantas outros precedentes mais...).
Como exemplo cabal do problemático e desabonador histórico recente do STF, que dizer então do “entendimento” adotado recentemente pela Corte Constitucional brasileira dando a entender que a “justa causa” no exame de denúncia contra réus que detém foro privilegiado (ex: ex-Ministro Palocci e o escândalo da quebra de sigilo do “caseiro”) pode se confundir com o mérito ao ponto de cercear atribuição constitucional do Ministério Público como titular da ação penal (artigo 129, I, do CR) e permitir negativa de vigência de disposição constitucional cuja força normativa (HESSE) precisa valer para todos e não apenas para clientes costumeiros da seletiva agência penal? Impedir pura e simplesmente a possibilidade da apuração de uma denúncia, da produção democrática de provas sobre ela dentro do devido processo legal, aliás, não é o que, guardadas as proporções e a transferência de esferas, fez a Comissão de Ética do próprio Senado Federal no “caso Sarney”, situação que mereceu tanto alarde e badalação da grande mídia?
Se é bem verdade que a hermenêutica pode estar em crise, que interpretar bem passa pela renovação e qualificação do ensino jurídico, pela superação da cultura positivista no caminho da interdisciplinaridade, talvez esteja na hora de se entender que interpretar bem a Constituição também passa pelo direcionamento de maior foco crítico a julgamentos concretos recentes do STF enquanto Corte Constitucional, na ótica e no arco-íris da linguagem...
Preocupante quando a “pedra no meio do caminho” (v.g, da concretização do princípio republicano da responsabilidade na esfera da persecução penal) é colocada por Ministros do próprio Supremo Tribunal Federal, mínima e necessária reflexão que não pode deixar os fatos caírem no esquecimento...especialmente se formos buscar a raiz e a origem das coisas.
Afinal, como ensina LÊNIO STRECK, não se pode dizer tudo sobre qualquer coisa e, por maior que seja a artimanha ou a retórica do discurso, até mesmo para a interpretação existem limites, especialmente no exercício da jurisdição constitucional pelo “monastério dos sábios”, que precisa estar sob o permanente crivo da capacidade crítica de todos nós enquanto “seres-aí”, pois a maior prova de “inautenticidade” (HEIDEGGER) de algumas soluções do STF precisa ser dada pela própria sociedade (e o aprendizado e as expressões aqui referidas são fruto da permanente interlocução com ALEXANDRE MORAIS DA ROSA[1]).
Alguém precisa “transcender” as portas e as “pedras” nos julgamentos do STF....(e aqui no “simbólico” talvez a melhor imagem dedutiva seja “Stonhendge”).
Nesse contexto, é de se perguntar como e quem pode consertar a chaminé da “usina jurisprudencial” do STF em um Poder Judiciário cuja cúpula está mais preocupada e “comprometida” (quando não intencionalmente alienada) com a fria e estatística observância de metas quantitativas e de rasteira “eficiência” em detrimento da interpretação e da melhor hermenêutica, de qualidade nos julgamentos? Isso, porém, já é assunto para outra e separada conversa... Para desespero nosso (e certamente do saudoso e genial DRUMMOND), existem outras muitas “pedras” no meio do caminho da Justiça, da interpretação e da hermenêutica, infelizmente...
[1] Vide Decisão Penal: bricolage de significantes. Capítulo 8, especialmente parágrafos sete e oito.
Não se pode pedir deles mais do que eles podem dar. Ninguém chega ileso ao STF. Conviver sabendo disto é o limite do que se pode fazer, e resistir. Abs Alexandre Morais da Rosa
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