sexta-feira, 10 de abril de 2009

Notas sobre angústia e desespero de "ser brasileiro": pegando carona com Kierkegaard e o existencialismo...


Angústia e desesperos são sentimentos permanentes e inerentes a toda e qualquer existência humana, que, por maior que seja a tentativa de condicionamento, sempre é idealmente livre. Com menor ou maior intensidade, a angústia e desespero perpassam momentos pessoais, vivências profissionais e, sobretudo, experiências de relacionamento e expectativa social. É justamente neste último ponto que, apesar de todo estereótipo de povo alegre, dinâmico e conformista, convém refletir sobre a lente múltipla da angústia e do desespero de ser brasileiro e suas diversas projeções.
Começando pelo meio ambiente: é difícil não se viver angustiado quando assistimos a maior floresta tropical do planeta sendo cotidianamente degradada e desmatada, pois, dentre outros inúmeros problemas, a despeito dos recursos naturais merecerem proteção integral e constituírem patrimônio de todos, o órgão ambiental federal de fiscalização (IBAMA), além de não ter mínima estrutura humana e técnica devida (até outro dia, o número de fiscais disponíveis na vigilância da Amazônia era praticante igual ao contigente de servidores disponíveis e lotados na unidade do Distrito Federal), não raras vezes vê-se seguidamente enfraquecido, seja pela “pressão interna” à criação proposital de órgãos paralelos capazes de fracionar o seu poder, seja diante das pressões “externas”exercidas pela classe empresarial e pelo agronegócio, sempre tão temidas pelos governantes e legisladores ávidos pela coleta dos seus recursos no período eleitoral. Que dizer então dos conselhos sociais do meio ambiente em todas as esferas de governo, instâncias deliberativas e de controle ainda solenemente incompreendidas e desconhecidas da população?
A propósito da perversa distribuição da terra, do agronegócio e da alienação do petróleo: será que não é desesperador perceber que, apesar da absurda concentração fundiária ser objetiva, histórica e estatisticamente comprovada, antes de se buscar justa, necessária, urgente e verdadeira reforma agrária, prefere a grande mídia criminalizar movimentos sociais? (no “front doméstico”, por alguns periódicos bem conhecidos, a campanha é franca e aberta, como bem assinala JOSÉ ARBEX JR. na sua obra “O jornalismo canalha” – A promíscua relação entre a mídia e o poder”). Assim, também é demais angustiante perceber que louvar o “agronegócio” de exportação unilateral de “matéria-prima” não resolve nada frente ao problema e a necessidade urgente de revitalizar o parque produtivo nacional. Ao invés de exportar "insumo", que tal agregarmos valor a produtos primários, estratégia não só capaz de fortalecer a indústria nacional, como também apta a provocar aumento de emprego, incremento do setor de serviços que, por sua vez, propiciará maior arrecadação de impostos em prol do crescimento do país? Como não enxergar no Brasil do “agronegócio” (o que dizer da força do lobby e da “bancada rural” no Congresso?), no Brasil que permite leilão a estrangeiros dos poços e suas preciosas reservas de petróleo (alguém já viu a “gorda mídia” enfrentar este tema com propriedade? E o que dizer da responsabilidade do STF para com a manutenção desse estado de coisas?), enfim, como fazer para que o nosso Brasil de hoje não siga os mesmos passos da colônia de ontem explorada no pau brasil, no açúcar e nos minérios...ou será que ignoramos ou teimamos em desafiar e assimilar o aprendizado histórico?
Como não ser tomado de angústia e desespero num país em que os índios, verdadeiro e originários donos da terra, por descaso estatal, são muito mais tido e vistos como exóticos selvagens que travam o "desenvolvimento", como casta de “protegidos”, máxime quando o descaso dos governos e a incompreensão da sociedade não está sendo suficiente para preservar o que existe de válido, universal e necessário na sua cultura? Como aprender a respeitar a ancestralidade indígena, como valorizar este “outro” espelho do passado se as tradições e valores destes povos ancestrais estão distantes e alheios à maior parte dos museus e acervos artísticos nacionais, se o órgão responsável por sua tutela e proteção, além de desestruturado, não raras vezes está recheado pelo “clientelismo”, pela indicação política que lhe retira mínima e necessária credibilidade junto às etnias e aldeias? Como garantir e equilibrar a preservação da cultura frente à universalidade dos direitos humanos sem permitir que haja violação de direitos fundamentais de índios, como saber até que ponto não é a ausência de efetiva e verdadeira "proteção" que está garantindo e permitindo que, na esteira do capital e do consumo desmedido do “mundo branco”, acaba se fomentando a exploração "do índio pelo índio"?
Como esquecer a angústia de vivermos num país onde os direitos trabalhistas são diariamente violados, onde espaços sociais rurais do imenso latifúndio remanescente ainda são alvo do trabalho escravo? Como não se desesperar ao saber que o respeito à legislação trabalhista ainda constitui justa e merecida luta a ser permanentemente travada, ainda mais quando os parlamentares (e empresários) de plantão, certamente movidos por interesses éticos e socialmente escusos, volta e meia ameaçam acabar ou querer "reformar" a Justiça do Trabalho, logo esta parcela de jurisdição célere e próxima do contato com o povo, logo esta fração de poder que via de regra está bem disposta a enfrentar com coragem o conflito constante e permanente com a engrenagem poderosa do "capital"? Ainda, no campo das relações de trabalho, como não se angustiar ou mesmo se desesperar com o fato de presenciarmos o total atrelamento da estrutura sindical brasileira a ser “situação” ou “oposição” irracional a governos, máxime quando as ditas “centrais sindicais”, na prática, seguem o mesmo caminho, mesmo quando se sabe que somente haverá trabalhador forte e em condições dignas se houver, ao seu lado, um sindicato sólido, honesto e independente nas suas ações? Quais sãos os verdadeiros e legítimos sindicatos que temos?
Falando agora de dinheiro, de orçamento: como desprezar a angústia de se viver em um país com aproximadamente 180 milhões de habitantes que, apesar de todas as nossas carências sociais, na agenda da previsão de arrecadação e gastos dos recursos a serem realizados, continua gastando mais de 1/3 (um terço) de nossa riqueza anual para cumprimento de uma dívida externa impagável, nunca auditada, com seus juros e encargos extorsivos, principalmente quando a educação e saúde estão longe de ser prioridade na "caixa preta" orçamentária?
Como esquecer a angústia e desespero se os governantes podem discricionariamente deixar de lado o pagamento de dívida legítima com certa companhia aérea nacional e, de outro lado, paradoxalmente, emprestar dinheiros a bancos, que por sua vez já compram e vendem dinheiro obtendo lucro estratosférico com o seu "spread"? Aliás, será que não é de angustiar saber que existem milhares de brasileiros completamente abaixo da linha da pobreza, demitidos da sua dignidade, vivendo sem condições mínimas de serviços essenciais e saneamento básico, em verdadeira invisibilidade, justamente quando resolve o Brasil “emprestar” dinheiro ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que, ao lado de outros “organismos ditos democráticos e internacionais”, tanto estrago já causou aqui no chão batido da nossa América Latina?
Falando agora do Parlamento e do Sistema Policial e de Justiça: Como não nos angustiarmos com o fato de uma operação que resultou na prisão de um banqueiro acusado de desvio de bilhões de reais (Daniel Dantas) seja constantemente “demonizada” e atacada com apoio da grande mídia na tentativa de se mudar a visão do “certo e do errado”, em verdadeira inversão de valores? Como não achar a Justiça Penal “seletiva” e voltada ao pobre quando, a partir da prisão de um banqueiro e do uso da interceptação telefônica para descoberta de gravíssimos casos de corrupção endêmica em obras públicas e outras falcatruas do "colarinho branco", tudo o que se consegue como produto é editar súmula ilegal e pontualmente proibitiva de algemas ou mesmo conceder “liminares-relâmpago de pijama” que sempre se mostraram tecnicamente impossíveis ou distantes de pobres clientes costumeiros da implacável malha punitiva? Que dizer de um sistema que permite a liberdade do sonegador de bilhões lesivos à ordem econômica ao mesmo tempo que aprisiona provisoriamente com facilidade e implacável tolerância-zero o ladrão da padaria para resguardo da “ordem pública” e da “credibilidade da justiça”? O que dizer de um sistema que permite que os réus mais pobres cumpram pena a partir da prisão provisória por falta de acesso à Justiça enquanto poucos abastados se dão ao direito de utilizarem os estreitos canais das instâncias recursais de Brasília para protelaram o julgamento de seus processos enquanto permanecem em liberdade indefinida (e indecente) em nome de uma presunção de inocência unilateral? De fato, prisão mesmo deve ser só para traficante (o inimigo da vez), aliás, a interceptação telefônica também... como se a droga (e as armas) não fossem financiadas pelas estruturas de poder que compõem a “narcodemocracia”. Ainda, como aceitar que no “olho do furacão” da pauta da mídia de hoje esteja mais o dito banqueiro risonho que suborna, mas sim o Delegado de Polícia que coordenou e conduziu a ousada operação de modo supostamente abusivo? Como admitir que, a despeito de todos os desvios de recursos públicos e atos de corrupção praticados na esfera pública ainda haja quem queira assegurar “foro privilegiado” (julgamento exclusivo nos Tribunais e não frente ao Judiciário de primeiro grau) para os Governantes Municipais autores de improbidade administrativa pela via da desonestidade? Quem por acaso sabe que o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, foi acionado por improbidade administrativa, processo que, recentemente, e sem nenhum alarde, restou arquivado sumariamente pelo STF, mesma Corte integrada e inclusive presidida pelo próprio réu? Como admitir que parlamentares brasileiros envolvidos em esquemas de corrupção possam continuar legislando “em causa própria”, ocupando postos de destaque sem ao menos esconderem que a sua real intenção é desqualificar e desestruturar instituições que compõe o sistema de justiça e responsabilização (Polícia, Judiciário e sobretudo o Ministério Público), principalmente quando "eles" (e não os “pobres de sempre”, preto, pobre, prostituta) passam a ser os "clientes" possível ou concretamente atingidos? Que país é este onde uma polícia oficial pode subir o morro transportada no blindado e sinistro "caveirão"com a mensagem de que ali se está “para buscar almas” e ainda por cima se vangloriar da lente do cinema para estimular idolatria popular ao personagem do torturador “Capitão Nascimento”? Que dizer quando, ao invés de atacar e vigiar a "polícia verdadeiramente bandida", preferem a OAB e alguns juristas mostrarem-se muito mais preocupados com a “espetacularização” e com o “Estado Policial” somente quando estes mostram-se nocivos ao “andar de cima”? Que dizer da mesma Justiça quando esta, na sua “doçura”, tolera que uma negociata lesiva, ilegítima e viciada ao patrimônio nacional possa “VALEr”?
Por último, como aceitar que na composição de um povo, integrada por pelo menos um terço de crianças e adolescentes, em todos os níveis federativos (União, Estados e Municípios), a "prioridade absoluta" assegurada pela Constituição (artigo 227) e Estatuto da Criança e Adolescente (artigo 4º) na destinação de recursos e formulação de políticas públicas eficientes para estruturar adequada rede de atendimento na atenção da população infanto-juvenil continue sendo ficção, mesmo quando, de outro lado, sobram forças retrógradas e simplistas (nada ocultas) para sustentar a estúpida solução da redução da maioridade penal num país que, pela ausência do Estado, sequer consegue tratar com mínima dignidade os seus quase quinhentos mil encarcerados em condições desumanas e, por conta disso, vulneráveis à “partidarização” e cooptação por organizações criminosas (PCC) no âmbito do caótico sistema penitenciário nacional? Que país é esse (RENATO RUSSO) em que da favela ao Senado continua sobrando sujeira para todo lado, onde ninguém respeita a Constituição (suas crianças e adolescentes), mas todos cinicamente ainda dizem acreditar no “futuro da nação”?
Mais do que exemplos concretos, retornando ao começo, talvez seja hora de lembrar que um dos expoentes teóricos da filosofia e psicologia existencial foi o dinamarquês SOREN KIERKEGAARD (1813-1855). Adaptando sua matriz teórica ao horizonte de sentido que se quer emprestar a estas linhas, deixando de lado a religiosidade exacerbada de KIERKEGAARD mesmo em tempo de Páscoa, sem que isto implique em se esquecer de sua fundamental “fé” no homem, de sua crença na realidade concreta da consciência individual, talvez a maior “angústia” e, por vezes, “desespero” de ser brasileiro, esteja alheio a todo totalitarismo e direcionamento no qual estamos comprimidos e, paradoxalmente, passe pela liberdade de escolha que todos ainda temos (ou deveríamos ter) para enxergar outras possibilidades, na medida em que as opções de outro caminho estão aí, disponíveis, à espera de um mergulho, de um novo olhar, de uma descoberta...OU é isso, OU teremos de aceitar a continuidade do drama atual. Dentro da idéia de que arte e sentido não se descolam, refletir a partir de uma visão antropológica do nosso Brasil tupiniquim, revirar as entranhas de suas "grandes", chocantes e pouco proporcionais recortes e dimensões, ainda que isso seja uma tarefa solitária, quase desértica, talvez seja um dos grandes méritos artísticos do genial "Abapuru" reproduzido por TARSILA DO AMARAL.
Como diria outro saudoso brasileiro, CAZUZA, nesta festa pobre, da qual todos fomos e estamos obrigatoriamente “convidados” a presenciar, no meio de toda esta droga que já vem malhada antes mesmo da gente nascer, ainda temos um Brasil que precisa, sim, mostrar a sua verdadeira cara, seus negócios, seus sócios, um Brasil onde é muito fácil pensar e descobrir quem é que paga, para a gente ficar assim....Se estiver convencido,não só acredite ou confie em mim, mas, sobretudo, assuma responsabilidade e risco pelas suas escolhas. Na melhor linha existencialista, simplesmente faça e assuma o melhor da sua parte....Reconhecer e exercer sua liberdade de escolha pode ser o primeiro passo...a busca emancipatória de uma nova ideologia para viver e, mais do que isso, sonhar em transformar o nosso Brasil.

Um comentário:

  1. Caro Márcio

    Há tempos estudo Kierkegaard mas ainda não tive oportunidade de sentar e escrever um artigo sobre a categoria angústia o qual fazes com muita prudência. De fato, denunciar as realidades vazias, os estereótipos criados para manter uma situação social APARENTEMENTE viável significa distorcer, ao máximo, a capacidade de cada cidadão buscar a concretização de suas vidas por meio de suas percepções. Entretanto, como conseguir essa possibilidade, se estamos acorrentados ao sono de Hypnos, deus grego, no qual impede de acordarmos desse tormento e de crescermos como coletividade. Mascarar a vida significa que nesse momento, como diria MAffesoli, somos uma mentira. Utilizamos as palavras errôenas a fim de contar quem nós fomos num determinado período da História.
    Acredito ser oportuno a leitura de dois livros: Michel Maffesoli - No fundo das aparências e Luis Alberto Warat - o direito e sua linguagem. Essas leituras, como indiquei numa postagem em meu blog, deve vir de uma crítica fundamentada que encare essa realidade múltipla e complexa. O mergulho, portanto, deve ser profundo, para se enxergar além do que o mero casulo corporéo limita-se a sentir e viver.
    Meu caro Márcio, continue o bom trabalho de denunciar uma realidade vazia com pessoas vazias as quais não compreenderam o que significa Ser humano e muito menos sentir o próximo nas suas esperanças e desejos. Deseja-se a mudança? Mas com qual grau de maturidade social se pode discutir tal façanha? Precisamos acordar do sono que Hypnos nos impos e crescermos como brasileiros.

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