sábado, 18 de junho de 2011

A violência no trânsito



1. O Brasil é o 5o país no mundo com maior incidência estatística de violência no trânsito (denominar ”acidente” pode ser imprecisão terminológica incoerente, com a verdadeira chacina diária que ocorre na circulação de veículos e pessoas pelo território nacional). No sistema-mundo, apenas somos superados por Índia, China, Estados Unidos e Rússia. Para que se tenha uma ideia, segundo dados da OMS – Organização Mundial da Saúde, somente em 2009 houve aproximadamente um milhão e trezentos mil vítimas de morte no trânsito no conjunto de 178 países.

2. Nesse contexto macabro e proporcional à dimensão das vidas e das famílias destroçadas pelo luto, é deplorável saber que estamos canalizando recursos públicos para “elitizarmos” estádios de futebol para Copa e Olimpíada quando muitas são as “faltas”, de política de pública de assistência social, de atenção à infância e juventude, de substanciais melhorias nos serviços públicos de educação e saúde, especialmente quando são praticamente “inexistentes” as ferrovias e outros meios de transportes alternativos, tanto nas estradas quando nas cidades.

3. Embora vivamos a “Década de Ações para Segurança Viária” (2011/2020) para a Organizações das Nações Unidas-ONU, não consta que esta organização internacional esteja definitivamente engajada no caminho da redução do absurdo fluxo de veículo automotor mediante incentivos e adoção de medidas concretas e, sobretudo, coercitivas. Falta à ONU, como aos demais organismos internacionais de modo geral, um olhar um pouco mais atento para a realidade do “sul” do mundo, a compreensão de que os problemas estão além muito além dos aeroportos (locais onde, paradoxalmente, o Judiciário criou os Juizados Especiais).

4. Parece que o transporte terrestre existente continua precisando de asfalto, pneu, óleo e gasolina, insumos cuja comercialização sobretaxada interessa a muitos e, claro, ao deus-mercado, entidade que, em tempo de constante enfraquecimento da ideia de Estado-nação dentro da perversa lógica globalizante e suas múltiplas facetas e dimensões, verdadeiramente dita o ritmo da nossa época.

5. O trânsito mata vorazmente a todo momento, tanto que, de certa forma, a impressão é que já nos acostumamos com isso ao ponto de estarmos relativamente anestesiados e conformados com o “risco”, aceitando, por vezes, passivamente a ideia teológica e não-laica de que “quando chega a hora não adianta”.

6. Quem já se deparou com um acidente de trânsito e viu um carro destroçado com pelo menos um corpo estendido no chão, quem já conversou com pessoas que trabalham fazendo resgate, sem falar naqueles que já tiveram amores de vida ceifados sob rodas, sabe muito bem do que eu estou falando. Já deveríamos estar cansados de aceitar a reprodução teimosa das cifras fúnebres da “guerra” nas estradas. Será que não tivemos tempo e maturidade suficiente para aprender e assimilar o golpe?

5. Já que a liberdade de expressão felizmente nos permite discutir a criminalização das drogas ditas ilícitas (quando deveríamos nos ocupar das lícitas também, as quais, aliás, não raras vezes, constituem ingredientes muito mais preocupantes quando combinadas com um volante), já passou da hora de tomarmos as ruas para reivindicar: Ferrovias já! Precisamos ter um mínimo de alteridade, responsabilidade social, cidadania e engajamento para não aceitar que as pessoas continuem morrendo nas estradas da mesma forma que muitos trabalhadores não há muito tempo morriam no ambiente do trabalho.

6. Penso que a sociedade de modo geral, precisa cobrar do seu maior advogado e fiscal, do Ministério Público brasileiro, maior atuação nas questões relacionadas ao trânsito, o que pode ser feito no âmbito dos 03 (três) níveis federativos. Para isso (e muito mais) existem as Ouvidorias dos Ministérios Públicos brasileiros, ainda que seu funcionamento esteja afastado do ideal, a começar pelo critério restritivo de acesso e escolha não-democrática para os cargos.

7. Existem muitos campos de atuação e possibilidades para o Ministério Público brasileiro no tocante ao trânsito: 7.1) atuação preventiva no âmbito das Promotorias de Saúde Pública (já que o subfinanciamento do SUS sofre com as vítimas do sistema); 7.2) atuação preventiva no âmbito criminal e mobilização para revisão e reformulação do marco legislativo (inclusive para incrementar a punição administrativa); 7.3) atuação sob a ótica da Promotoria das Cidades, cobrando gestão e política pública adequada para o tema.

8. Por mais que na raiz da maioria dos acidentes sempre exista uma boa dose de conduta humana indevida, antes de fazer o julgamento daqueles que pagam com a vida por um ato culposo, precisamos, mais do que nunca, de uma nova política pública para o trânsito, incluindo, quem sabe, uma publicidade mais agressiva inibidora de novas infrações, medida que poderá surtir efeito se ainda acreditarmos que nos resta um mínimo de sensibilidade para pensar e refletir que, mesmo na “correria” da pós-modernidade, querer ganhar alguns segundos pode significar a perda de muito tempo, de todo o tempo que a nossa condição humana poderia virtuosamente desfrutar.

9. A psicologia do trânsito, da mesma forma que outras abordagens interdisciplinares, poderiam explicar muito do comportamento “suicida” para os tempos acelerados e vazios da pós-modernidade, mas neste tipo de ação e iniciativa ainda investimos pouco, quase nada. Os “refúgios” e “praças” de pedágio, quando muito, tem banheiro precário, café e água, constituindo espaços muito longe, portanto, de possuírem a estrutura mínima adequada e compatível com o interesse público.

10. Para completar este triste quadro, a terceirização do serviço de exame para obtenção da carteira de habilitação, de inegável interesse público, contribui para agravar ainda mais esta situação. Com facilidade similar à decisão política recente que entregou alguns aeroportos estratégicos para exploração desmedida da iniciativa privada, a possibilidade da licença ser obtida por intermédio de empresas terceirizadas que atuam distantes de um plano adequado de fiscalização, ao invés de melhorar o serviço, serviu não só para onerá-lo ainda mais, como também para aumentar o campo para a fraude, para a atuação de organização criminosas, situação que não raras vezes faz com que o exame para obtenção de uma licença para dirigir seja um ato de corrupção.

11. Se é bem verdade que os carros nacionais melhoraram, graças ao ex-Presidente “collorido” de Alagoas (hoje Senador), segundo o qual tínhamos “carroças” (que ironia), a verdade é que enquanto ABS e AIRBAG não forem itens obrigatórios e, se preciso, subsidiados com incentivo do Governo, inclusive com renúncia fiscal, pouca coisa mudará, pois, para um país que faz da rodovia sua principal via de transporte, padrão máximo de segurança nos veículos seria fundamental. Concessão predatória e seus pedágios, definitivamente não são a solução, até mesmo porque neles as áreas de duplicação estão longe de constituírem a regra.

12. Da mesma forma, enquanto não houver um controle mais efetivo das Polícia Rodoviárias, do Ministério Público e da Justiça do Trabalho para condições dignas e justas de jornada máxima para profissionais do transporte coletivo e de carga, pior será a situação, especialmente num espaço em que quem vive da “estrada” dela precisa encontrar meios de sobreviver.

12. De outro lado, é preciso maior cultura de fiscalização no melhor dos sentidos, não prática mercadológica arrecadatória, não raras vezes em contexto de corrupção, como acompanhamos frequentemente.

13. Ademais, ainda que o marco penal possa e deva ser melhorado (inclusive com criação de setor adequado para perícia criminalística), é no direito administrativo sancionador que os crimes de trânsito deveriam encontrar a melhor solução, incluindo efetividade e rapidez ao devido processo legal para aplicação da pena de suspensão de carteira de habilitação por períodos significativos para pessoas envolvidas em delitos culposos (para os dolosos o resultado poderia consistir na perda do direito ou algo quase que equivalente a isso).

14. Em tempo, dentro da ideia de que mesmo o pior dos quadros precisa ter um horizonte de transformação, fundamental retransmitir aviso de utilidade pública: o DENATRAN (Departamento Nacional de Trânsito), dentro da ideia do “Pacto Nacional pela Redução de Acidentes de Trânsito – um pacto pela vida”, no propósito da construção de um plano nacional, aceita até 30 de junho sugestões para a redução de mortes no trânsito. Sendo o leitor motorista ou não, esqueça o “dar de ombros”, leve seu “recorte crítico” para lá e participe: www.denatran. gov.br – planodecadadotransito@cidades.gov.br.

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