sábado, 10 de dezembro de 2011

Lembrando Warat: “Ciência jurídica e seus dois maridos”(parte 1).


1. A postagem de hoje aproxima caminho com a primeira pessoa, pelo menos na narrativa, pois não há como falar de Warat sem tentar ser um pouco original e, porque não dizer, minimamente autoral. Se este blog um dia teria de fugir ao formato de artigos propositalmente impessoais, ninguém melhor do que Warat para autorizar e legitimar a estréia, aqui e agora, de um novo formato, pelo menos por hoje. Afinal, não há como pensar em Warat sem deixar que a subjetividade e a emoção tomem conta do texto, alastrando-se no “jogo de linguagem” por vir, que para ficar ao gosto waratiano, precisa fluir livre das regras que aprisionam, funcionando como verdadeira “caixa de ferramentas” para que cada um retire o que achar e julgar de melhor (e nas aspas aqui vale lembrar de Witgenstein, talvez Foucault...).

2. A idéia da presente postagem é explorar, com todas as limitações próprias do guia turístico que ora se apresenta, o maravilhoso mundo (este sim sempre novo) que há no largo e libertário horizonte da rica produção teórica de Warat, a qual tem no livro “Ciência Jurídica e seus Dois Maridos”, ao meu ver, um dos seus maiores e principais marcos.

3. Este genial livro, que bem poderia ser leitura obrigatória aos alunos recém ingressos nos cursos de Direito, definitivamente, tem muito a dizer. Basta colocar as lições deste livro na bagagem oscilante e trepidante da “carroça jurídica” e as melancias certamente se acomodarão, como bem anuncia o titulo do primeiro capítulo.

4 . Antes de mais dizer, melhor deixar a palavra livre de usurpação de "sentido" com a verdadeira bússola que é Warat. Por conta disso é que apenas arrisco chutar um tópico seguido da arbitrária seleção de algumas passagens, as quais, longe de terem sido extraídas e pinçadas ao longo de um capítulo, acreditem, decorrem de escolha feita em gigantescas, incríveis e memoráveis 4 páginas!

A ver:

5. A poesia como começo:

“Por onde começar? (...) tenho clara a escolha de um titulo e o sabor de um discurso inesperado, o qual, como o sonho, pode fazer falar tudo, até o que em mim é estranho. Escrever é sempre correr o risco de devolver ao desejo sua liberdade”

6. De cara, a prova do gosto e fusão do direito com a literatura (ou seria o contrário?):

“A Jorge Amado devo o titulo deste livro e a Cortázar a liberdade de usurpá-lo sem culpa e fazer estalar, em mim, o sentido precário de um romance sobre o imaginário, como passaporte para uma obra de mobilidade que tenha a porosidade de esponja em relação a todos os eufemismos normalizadores e a todos os códigos intolerantes e intoleráveis que cercam a sociedade”

6. A lucidez da diálogo entre ocidente e oriente em tempo de conflitos civilizatórios:

“uma ideologia da ordem e da totalidade – graças à qual o pensamento ocidental matreiramente define o mundo e nós”

7. Justificando a escolha de uma obra de Jorge Amado como inspiração para atividade criativa sobre seus personagens:

“Concretamente explodiu em mim a possibilidade do emprego das personagens de um romance, como entrada de uma rede de vozes com mil estradas. (....) Metamorfoses de personagens que me permitiram valer-me deles como metáforas tutoras de minha versão de mundo, da magia dos significados que portam a sensibilidade (...) Dona Flor e seus dois maridos como criaturas da linguagem, encarnam a possibilidade de um espaço onde se possa fazer a sondagem crítica de pontos de partida ou de chegada, que sustentam a versão congelada e sublimada da realidade. Personagens da fuga”.

8. A forma lúcida de enxergar criticamente o direito e seus “operadores”:

“Direito como expressão do amor e dos escribas da lei e sua alienada sabedoria”

9. A janela aberta para o jardim da psicanálise:

“a presença do outro como diferença (...)Flor (...) heroína da poligamia, dos significados e do imaginário erotizado. Um impulso vulcânico para viver (...) cuja grandeza está precisamente em haver aprendido a existir, pondo em risco o padrão de desejos instituídos (podados).

10. Uma importante pretensão:

“Desajustar toda submissão a um mundo sólido, material e uno (...) destronar essa idéia monstruosa que serve, com suma descrição, para que a cultura-detergente (empreendimento cultural que representa piamente um pensamento sem sujeira) penetre no nosso imaginário e o macule”

11. Explicitando a diferença de Teodoro e Vadinho:

“Teodoro conseguiu transformar o amor em dever (...) vivendo envolvo a um emaranhado de infinitos rituais burocratizantes (....) O amor de Vadinho (como eu imagino) não conheceu a morte, porque sempre foi um exercício de autonomia (...) Vadinho tem um imaginário que foge de todos os intentos de castração”

12. O que falta?

“Falta o sabor apimentado da marginalidade da ambivalência”.

Agora, infelizmente, falta (fisicamente, e tão só assim) LAW (Luis Alberto Warat). Todavia, ainda temos uma casa sólida para continuar. http://www.facebook.com/casawarat?ref=ts. Mais do que isso, sobram moradores para a gente conversar (Leopoldo Fydika, André Coppeti, Albano Marcos Bastos Pepe, Andrea Beheregaray, Gerivaldo Alves Neiva, Marcus Fabiano, Alexandre Morais da Rosa...). Que(m) mais?


OBS: Para quem chegou até aqui um convite (e desafio): encaminhe um “post” falando da biografia de Warat, contando uma história ou comentando alguma de suas obras. Ao autor da texto publicado no “Recortes Críticos” terei o maior prazer de enviar, com prazer, um exemplar de “Ciência Jurídica e seus dois maridos”.

OBS: Por justiça aos muitos e valorosos "waratianos" de plantão, a lista final é dinâmica..e simplesmente enumerativa, ainda que simbólica.


5 comentários:

  1. espíritu waratiano poesia e janelas abertas... brillante recorrido!

    ResponderExcluir
  2. Conheci o professor Warat através do Jornal Estado de Direito e desde então quero saber mais sobre ele... mas tenho apenas um livro: A rua grita Dionísio!. Tenho sentido dificuldade em adquirir outros, por questões financeiras, pois soube que custa 400,00 os 4 volumes de uma coleção e outros como este que o Sr postou já que estão esgotados. Assim, candidato-me para tentar conseguir um exemplar com meu relato: A falta de prazer em aprender, com que nos deparamos em nossa prática de ensino, é um sinal claro de que se exauriu o modelo professoral e que devemos entender que o centro da classe não é o professor, senão o tema analisado pelo grupo”, partindo desta constatação “waratiana”, tenho aplicado no curso de Administração de Empresas em Salgueiro, cidade do sertão pernambucano, práticas educacionais distintas das que se encontram na maioria dos cursos, procurando despertar nos alunos a capacidade de análise e sensibilidade para distinguir o errado no aparente certo, o injusto no aparentemente justo, acreditando que os conhecimento das leis e de seus princípios se solidificam através de uma educação de valores humanísticos, capaz de preparar os profissionais para o século XXI: um século mais do que digital, o século dos valores morais e sociais, complexo e contingente. Neste contexto, a educação jurídica deve estimular a necessidade de expansão dos direitos fundamentais e a proteção destes direitos nas relações sociais, é o que fazemos quando estudamos determinado assunto do programa acadêmico, indo além ao complementar a legislação pertinente com textos jornalísticos, jurídicos, literários, utilizando a linguagem audiovisual cinematográfica, televisiva e via internet, alcançando sempre uma abordagem humanística, integrada aos acontecimentos globais, poética em sua prática educativa.

    ResponderExcluir
  3. Caramba, tenho uma história surreal para contar aqui! Mando em breve! hehe.
    Ow Luis Alberto, quanta saudade do que não vivemos!!!

    ResponderExcluir
  4. Sempre fui "waratiana", mesmo quando nem sabia!
    Cena 1- A primeira Faculdade que estudei era cercada de muita riqueza, os altos muros me assustavam e um avião no pátio (pintado por Romero Brito) não me deixava sonhar... Como “voar” se do outro lado do muro havia uma comunidade pedindo “pão”? A maioria não via, andava de carro ou carona ou simplesmente fingia que aquilo tudo não existia. Só vim sossegar quando mudei para uma Faculdade mais “cristã”, mais “humana”, nesta as pessoas não eram “etiquetas”, as pessoas eram “seres humanos” e o Direito voltou a fazer sentido, tanto que fiz minha pós-graduação e quem sabe farei meu mestrado...
    Cena 2- Primeira vez no FORUM, também fincado numa antiga “favela”, em seus corredores de piso luxuoso e ar-condicionado, pessoas de chinelo, rostos angustiados, advogados apressados e servidores sem muita pressa... Aquilo me fez pensar mais uma vez na injustiça, desejei um dia entrar com uma câmera e fazer um filme. Maria Augusta realizou o meu sonho com JUSTIÇA.
    Cena 3- Formatura. Mas o que comemorar? Não era advogada, não era professora, não promotora, não era nada. Comemorar a formatura, o fim ou o começo? Acho que foi meu recomeço. Então pedi à minha mãe um vestido com o nome “justiça”, ela relutou: “O que vão pensar??” Respondi, trata-se de um vestido-homenagem e ponto. Assim ela costurou, pintamos, vesti, comemorei. Assim foi a minha formatura. O fim do começo. No outro dia fui preparar minha documentação para entrar na especialização de direitos humanos.

    ResponderExcluir
  5. Querido Marcio, o Warat chegou em minhas mãos quando criávamos na Universidade Estadual do Piauí um projeto de Assessoria Jurídica Popular chamado CORAJE (Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil). Em virtude dos diálogos travados com os colegas do Centro Acadêmico - Gestão "Por amor às causas perdidas", uma colega de outra universidade me entregou aquele livrinho de capa verde "Introdução Geral ao Direito - O Direito não estudado pela Teoria Jurídica Moderna, afirmando que talvez fosse ao encontro de meus pensamentos e angústias, quando eu cursava o primeiro ano do curso.
    De lá para cá, eu venho conhecendo o Luis Alberto, que infelizmente eu só compartilhei palavras escritas por email, nunca faladas por telefone ou pessoalmente, mas com quem eu compartilho a vida e o sonho de uma educação jurídica carnavalizada e amorosa.

    Nessa caminhada, sai do Piauí, andei por Brasília e estou aportada agora aqui em Florianópolis, lugares por onde ele andou e espalhou sua magia.

    A história surreal que quero contar aconteceu em Brasília.

    O último livro lançado de Luis Alberto Warat é a "Rua Grita Dionísio". Em função dos meus estudos com ele, desejei muito adquirir este livro. Porém, as moedas eram contadas e destinadas a sobrevivência. Guardava o que sobrava no intuito de comprar o livro. Quando isso estava para acontecer, a moça que dividia o quarto comigo mandou uma mensagem dizendo que as lojas americanas estava em promoção. Fui pagar uma conta no banco e aproveitei e entrei na tal loja. Comprei desodorante, sabonete, shampoo e alguns chocolates. Quando ia para o caixa, olhei os livros que estava numa estante em promoção por R$ 9,90. Fiquei a olhar. Eram livros de auto-ajuda e aquela literatura toda que é consumida em massa. Minha cabeça viajou pensando no que leva as pessoas a consumirem tanto aquelas sempre mesmas baboseiras. Nessa, levantei a plaquinha que indicava o R$ 9,90 e ... INACREDITÁVEL: Lá estava o livro gritando para mim! A rua Dionísio, gritava: "Andreia, me tira daqui! Andreia, não larga de mim". Peguei imediatamente o livro e passei no visor eletrônico que me avisou que o produto não era identificado. Fui ao caixa. Minha euforia no momento era levar o livro para casa por nove e noventa reaizinhos!!! Argumentei com o moço que o livro tava na estante de R$9,90 e ele deixou eu levá-lo! Quando cheguei em casa, saltitante, abri o livro imediatamente e aí me dei conta de que era um livro usado e, portanto, esquecido naquela loja que certamente não venderia aquele livro!

    Poxa! Foi muita felicidade!! Um encontro surreal! Qual a probabilidade de alguém esquecer um livro do Warat, o último livro dele, aquele que eu queria tanto, nas lojas americanas?!!

    Para mim, realmente é o meu e o desejo dele de que não nos perdamos e que continuarmos nos encorajando para inventarmos outras formas de vida e de ciência e de arte!

    P.S.: Outra coincidência é que Luis Alberto morreu no meu último dia de aula na universidade! A morte é também o começo da vida!

    P.S.2: E aí, ganho ou não ganho a "ciência jurídica e seus dois maridos"?! ;)

    ResponderExcluir

Dê a sua tesourada, faça o seu comentário: