terça-feira, 17 de março de 2009

Democracia e Direitos Humanos: conceitos complexos e os riscos do “utilitarismo” nos seus “vestidos”


Estabelecida a laicidade do Estado como relevante conquista civilizatória, resta saber e questionar se as premissas de ontem (e aqui pausa para lembrar o quanto se quis incluir e enganar dentro do conceito de “evangelizar”, proposta que trouxe flagelo e violência para os povos originários, notadamente os índios) não foram ou estão sendo atualizadas à luz de um novo, sedutor e mais elaborado discurso no atual sistema-mundo (IMMANUEL WALLERSTEIN): democracia e direitos humanos.

Por incrível que pareça, o risco atual pode estar escondido onde menos se espera: no discurso utilitário e abusivo da necessidade de “democratizar” nações e promover “direitos humanos”, argumentos teoricamente elevados que, contudo, na prática, como nos mostra a história recente (ex: invasão do Iraque pelos EUA), estão sendo barata, banal e ilegitimamente invocados para justificar intervenção militar e proteção exclusiva dos interesses econômicos dos países ricos frente a outras nações da subperiferia ou periferia do capital, destrutiva e inteligente forma de continuar a exploração neocolonial que remonta às expansões marítimas desde o século XV envolvendo as principais potenciais Européias e, particularmente, os Estados Unidos.

A idéia equivocada de que a civilização “superior” estaria no Ocidente, além de implicar na egoísta negativa do “outro” oriental muçulmano, versão perversa e atualizada do “anti-semitismo” (GIORGIO AGAMBEN), também pode conformar patológica situação de uso falso, distorcido e impróprio de conceitos valorosos e necessários como “democracia” e “direitos humanos”. Esta percepção faz com que ambos conceitos sejam confinados em "campo de concentração", a pretexto de chancelar e legitimar o que muitas vezes não passa de uma violação à soberania de nações pobres ou em desenvolvimento, "missão" motivada por interesses políticos que, por detrás, trazem indisfarçavel significado econômico (afinal, não é outra a lógica do capital: que dizer do desespero por “petróleo” e a situação envolvendo o Oriente Médio como palco permanente de conflitos?).

O risco da criminosa invocação “utilitária” do discurso dos direitos humanos e da democracia aumenta com a possibilidade de que a concepção de ambas idéias perca-se ou dilua-se na subjetividade (NOAM CHOMSKY) ou mesmo na liquidez transitória e instável (BAUMANN) dos valores contemporâneos, atmosfera cada vez mais degradada, ainda mais se levarmos em conta a pauta comprometida da “grande mídia”, infelizmente alheia e divorciada dos reais e humanos problemas da sociedade.

Os direitos humanos precisam promover valores verdadeiramente solidários, dentre eles a paz e a harmonia entre os povos; a democracia, por sua vez, precisa ser substancial e experimentada em ambiente próprio a partir da combinação dos elementos (povo-Estado-território). Ambos conceitos não podem ser “simulacros” (BAUDRILLARD) e, ao contrário, devem ser vistos com o espírito crítico pela sociedade em que projetam seus efeitos. Até que esta compreensão esteja devidamente debatida e assimilada no tecido social global, prudência e desconfiança sobre as reais intenções do uso das expressões “democracia” e “direitos humanos” é fundamental (a propósito, a lição recente do massacre proporcional por Israel na striscia di Gaza não deveria ser tão facilmente esquecida...como, ao que parece, já foi).

Assim, quem está atento e desperto com o que efetivamente acontece não se surpreenderá ao perceber que a “retórica do poder”, na sua arrogante ganância e infelizmente costumeira falta de limites éticos, pode estar apenas utilizando a “democracia” e os “direitos humanos” como marionetes para contracenar cínico e cênico discurso, quase sempre sem fraternas e elevadas intenções e interesses, o que não trará outra coisa senão mais desumanidade, violência, guerra e exploração.

O abuso do poder oficial e o verdadeiro “terrorismo” (a pedra da broken window arremessada de dentro) são inimigos das verdadeiras democracias e dos genuínos defensores dos direitos humanos, institutos que, em seus pilares de sustentação, têm a marca histórica da legalidade substancial e do controle efetivo da atuação do Estado em favor das garantias fundamentais dos cidadãos, algo bem diverso do totalitarismo e xenofobia hoje reinantes em boa parte das “frações” do solo dito “civilizado” e “desenvolvido” (cuidado: o inimigo não está apenas no oriente e também pode ser "o estrangeiro" africano, asiático ou sul-americano fora do lugar - CAMUS). Algo bem diverso do que tomar por “guerra” um conflito entre um Estado organizado e oficial e determinados seguidores de uma etnia..... (mais uma vez a lição de Gaza).

A democracia não pode ser algo puramente formal consistente em eleições formais e periódicas, não dispensando condições materiais de cidadania para sua efetivação. Os direitos humanos, por sua vez, devem considerar conquista vivenciada após II Guerra Mundial (1945) em busca de uma verdadeira e plural universalidade (a advertência é de BOAVENTURA SOUZA SANTOS na sua polêmica com NORBERTO BOBBIO).

A questão não passa em se afirmar a impossibilidade de valores universais globais, dentre os quais “democracia” e “direitos humanos”, mas sim no questionamento de onde (e com quem) eles estão e, claro, quanto “custam”...

Certo é que democracia e direitos humanos, idéias indiscutivelmente complexas (e semanticamente abertas – daí o perigo), não podem escapar do controle crítico para servirem de retórica e discurso de manutenção de uma viciada superestrutura ideológica (WALLERSTEIN). Ao contrário, democracia e direitos humanos precisam constituir ferramentas de conserto e transformação da realidade social global extremamente excludente e injusta, na qual quem tem menos, cada vez continua com “mais” do menos, em estado de permanente desapropriação de emprego, de melhor condição social e, inclusive, intelectual (simples: quem não pára para pensar ou estudar fica mais fácil de ser cooptado sem o risco de se tornar um “subversivo”).

É na simbólica e melancólica balada deste quadro que o direito internacional (e sua força coativa nas suas possíveis expressões) precisa dizer a que veio, tomar seu reflexo no espelho para revisar até quando seu funcionamento está efetivamente comprometido com os valores dos direitos humanos e com as melhores expressões democráticas enquanto tudo corre à sua “sombra”.

A propósito, será a ONU (e seu restrito Conselho de Segurança de assento qualificado) organismo verdadeiramente “universal” e democrático ou esta atual e badalada organização de nações não passa de “fachada”, orquestra retórica cujos “maestros”, ao invés da harmonia, ditam e ouvem apenas a nota e a sinfonia barulhenta dos instrumentos destinados a reproduzir música para as nações e camadas dominantes? Será que as intervenções da ONU têm sido efetivas e resolutivas para a promoção dos direitos humanos e para um mundo mais democrático? Problematizar para refletir é preciso.

Por essas e outras que a famigerada estrutura ética e política do sistema-mundo moderno não pode permitir que o "direito de intervenção" e possibilidade de ingerência continuem sendo prerrogativas exclusivas dos Estados economicamente fortes, não raras vezes maquiada e recheada de falso discurso democrático e de ilusória “promoção” dos direitos humanos.

Em suma, tal como o cristianismo (suas mazelas e “fogueira”) e a idéia da lei natural serviram como argumentos falaciosos para uma missão enganosamente civilizadora no real sentido do termo, todo cuidado é pouco para que mesmo e mau uso não se faça com o discurso (legítimo e necessário, diga-se de passagem) da promoção de direitos humanos e democracia.

Não esqueçamos que a retórica do discurso pode ser a “arte” de “tapear” e destruir a utopia de um mundo mais justo, inclusivo, humano, democrático e verdadeiramente coletivo.

Não por acaso o risco da verdadeira “barbárie” e de um novo “flagelo” pode estar na institucionalização e na mutação da mesma intenção imperialista e violadora da dignidade, agora travestida de nova e aparentemente legítima roupagem, “vestidos” que, se não percebidos e combatidos pela devida lente crítica, no primeiro vento, poderão mortificar e levar embora a utopia (e com ela o sonho) da democracia e dos direitos humanos como conquistas e valores essenciais sem os quais a vida perde o sentido e o sistema-mundo fica pior e cada vez mais “nu"....

6 comentários:

  1. Márcio, adorei seu blog e suas idéias, peço autorização para sugar seus raciocínios.


    abraços.


    H.Perpétuo

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  2. Prezado amigo,
    às vezes fico pensando que meu pensar dialético não é tão bem definido, pois parece que tudo se repete...

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  3. "Simples: Quem não pára para pensar ou estudar fica mais fácil de ser cooptado sem o risco de se tornar um "subversivo"", observo algo análogo com as periferias do nosso Brasil (para que combater a fome e a pobreza, se eles ganham voto com isso), e é dessa mesma forma que vejo esse discurso "utilitarista" por parte das nações desenvolvidas, pois certamente nesse capitalismo selvagem, somente "ajudam" o próximo pensando em fins lucrativos, pois que país vai disponibilizar milhões de seu orçamento só pq almeja prosperar direitos humanos e a democracia? kkkkkk, eu tenho fé sim (me desculpe pela ironia), mas não acredito mesmo, e por aqui, pelo menos uma parte (e se não for quase tudo) do orçamento de cestas básicas, vão sim para crianças carentes (os filhos de nossos representantes-charlatões).
    Porque é fácil desviar dinheiro desses programas ? pq como disse o Márcio, tais ideologias entram rápido pelos ouvidos das pessoas, pois possuem "argumentos teoricamente elevados" que fazem as pessoas pensarem em ambientes mais harmoniosos, mas que por detrás se esconde o cheiro podre e o gosto azedo do dinheiro.


    H.Perpétuo

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  4. Interessante e intrigante a missão dos educadores na formação do bacharel em Direito sobretudo quando o assunto é democracia e direitos humanos. O educando traz consigo valores da sociedade atualmente distorcidos e viuciados pela necessidade de se globalizar para empreender. Na formação de educandos do ensino médio o lema é "bandido bom é bandido morto"...Triste realidade de um País que pensa em set tornar gente grande!

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  5. Maravilhoso artigo,mesmo para quem como eu, se considera pouco entendida no assunto abordado.ANNA MARIA HADDAD BAPTISTA,em seu comentário sobre a obra DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA de ÉTIENNE DE LA BOÉTIE,encerra seu cometário na coluna de Literatura da Revista Filosofia Ciência e Vida,n.30 dizendo:
    "A VERDADE É QUE TIRANOS E URUBUS ALIMENTAM-SE DA MESMA COMIDA.A SUPERIODADE DOS URUBUS CONSISTE EM POTENCIALIZAR A NATUREZA.TIRANOS DESPOTENCIALIZAM A LIBERDADE DO PENSAMENTO.

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  6. Márcio,
    desde o 3º ano da faculdade de direito, época em que que fui bolsista de um professor de história e me preparava para o concurso do Itamaraty, eu desconfiava do discurso universalista dos direitos humanos. Ou melhor, do (possível) uso político do discurso.
    Eu trabalhei numa pesquisa sobre a política externa dos governos militares. Um dos eixos de análise era a política externa norte-americana, que passou a defender os direitos humanos na América Latina no final da década de 70, porque as ditaduras tornaram-se nacionalistas em excesso e começaram a contrariar interesses econômicos.
    Em outro contexto, outro exemplo: por mais que eu repudie as práticas muçulmanas, tenho algumas restrições ao discurso inflamado ("civilizatório") que as vê apenas como "obscurantismo"...
    Para além do discurso universalista, há (muitos) interesses nada ingênuos na defesa do princípio.
    Abraço, Dado

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