domingo, 7 de março de 2010

A Alemanha, o nazismo e o que restou de Auschwitz: em jogo a capacidade da humanidade enfrentar e aprender com o passado


“(...) enfrentar psicologicamente o que aconteceu não é fácil para muitos alemães. Gerações chegam e passam. Têm de se debater repetidamente com o fato de que a imagem que os alemães possuem de si mesmo está manchada pela lembrança dos excessos perpetrados pelos nazistas, e que outros, e talvez até suas próprias consciências, os culpem e condenem pelo que Hitler e seus seguidores fizeram (...) É uma questão em aberto se, e em que medida, os alemães digeriram seu próprio passado e, em particular, as experiências da era Hitler. (...) o passado de um povo também aponta para diante: o seu conhecimento pode ser de uso direto para construir um futuro comum” Norbert Elias


  1. Grande questão histórica reside em saber se as barbáries e atrocidades do movimento nacional-socialista (nazismo) teriam o mesmo impacto tivessem ocorrido em outro palco que não a Grande Alemanha, terra do Império medieval Romano Germânico e sua duração de séculos, origem da mortífera Guerra dos Trinta Anos (1618/1648) que se alastrou pela Europa, do Segundo Império (Kaiserreich) que foi de 1871-1919, da história de um povo marcado por conflitos, rupturas e descontinuidades, que para muitos sempre teve na sua raiz a busca de hegemonia, hierarquia, supremacia....
  2. A “culpa” e o estigma de alemães terem preconizado a maldição do nazismo ainda haverá de povoar as mentes até hoje abaladas e impressionadas por tanta desumanidade e incivilidade concentrada, sempre desafiando explicação, questionamento e perplexidade. Basta percorrer a literatura e o cinema para que se perceba o quão fértil é o solo do nazismo para reflexões contemporâneas, certo de que o passado deixa “marcas” que precisam ser cicatrizadas para construção de um novo futuro.
  3. Seria o genocídio nazista algo que poderia ter ocorrido em qualquer território ou uma “excepcionalidade” e “particularidade” que somente chegou onde chegou por ter ocorrido no peculiar e complexo processo de formação do Estado Alemão? Difícil encontrar onde está a “verdade” deste “objeto”...(que o diga o brilhante Karl Jaspers, filósofo criador do existencialismo e perseguido pelo regime totalitário de Adolf Hitler)...
  4. Unificada tardiamente em 1871, com destaque para a figura de Otto Von Bismarck e a vitória sobre a França, vencida na Primeira Grande Guerra (1914-1918) com devastadoras conseqüências de dívidas, perda de território e prejuízo marcante na auto-estima, incontestável que Adolf Hitler foi astuto o suficiente para explorar a “derrota” e a crise mundial vigente no período para sustentar que o Tratado de Versalhes (1919) e o que decorreu da próspera República de Weimar (1919-1933) teriam conduzido o povo alemão à fraqueza e à humilhação...Foi assim que o subestimado Hitler construiu a ideia de que o retorno a mais um Império era necessário, inclusive para retomada do “orgulho nacional”...e logo de início veio a invasão da Polônia, o implemento do Estado de Exceção, dentre outras medidas autoritárias negligenciadas num primeiro momento aos olhos das outras grandes nações...(falta de alteridade pela qual a humanidade pagou elevado preço).
  5. Foi na Alemanha que o pretexto estúpido e absurdo de se combater comunistas (que supostamente teriam incendiado o “Reichstag” - sede do parlamento alemão) deu origem ao “terror” de um regime totalitário construído sob medo e marcado por substancial apelo popular da classe média na suposta perspectiva da valorização desse “orgulho nacional” (qualquer semelhança com a ditadura brasileira pode não ser mera coincidência).
  6. Ainda que as razões de perseguição aos judeus remontem a um anti-semitismo vivenciado pela própria história do cristianismo, tamanha era a manipulação e propaganda (Goebbels), tal era a dimensão e o contexto de um nacionalismo historicamente identitário e exacerbado no seio de um povo reconhecidamente marcado por ter psicologia guerreira e bélica, que realmente é difícil saber qual seria o nosso real comportamento se fossemos alemães nos idos do nacional-socialismo praticado entre 1939-1945, entre a ascensão e a queda do Reich...Tudo não passa do desafio da perspectiva, da paralaxe, do desafio que é se colocar na condição do “outro” e de suas circunstâncias.
  7. Como explicar que tanta crueldade foi praticada no âmbito de uma sociedade historicamente desenvolvida e intelectualizada na perspectiva “civilizatória”, berço de expoentes e expressões da intelectualidade mundial? (Lutero, Goethe, Schiller, Weber, Brecht, Wagner, Marx, Beethoven, Kant, Marx, Nietzsche, Heidegger...)
  8. Difícil de entender, da mesma forma, como Hitler pode ter tanto espaço, especialmente quando já havia confessado seu anti-semitismo e seus propósitos quando da publicação da sua obra “minha luta” (Mein Kampf), publicado entre 1925/1926?
  9. No contexto da polêmica, conferir a opinião abalizada do sociólogo Norbert Elias (1897-1990) pode ser um bom começo para melhor compreensão do tema, da herança e do “passado” alemão...Segundo ele, no habitus alemão, “os modelos militares de comando e obediência prevaleceram em vários níveis sobre os modelos urbanos de negociação e persuasão”. Por mais que aí possa residir boa dose da disciplina elogiada dos alemães, que construíram, apesar de tudo, uma nação rica e altamente desenvolvida, a “natureza descontínua do desenvolvimento alemão” é uma realidade que não deixa de ser uma entre tantas causas enraizadas aos acontecimentos.
  10. Pior do que isso, só mesmo a impressão que o “campo de concentração” apenas mudou de nome, lugar, de vítima...o mesmo “mal” lá reproduzido hoje continua sendo praticado, ainda que não tão explícito, de modo mais desconcentrado e disperso, num sistema-mundo ainda rematadamente injusto e cruel, permeado de “micro-guerras” e de conflitos;
  11. Ocorreu o julgamento de Nuremberg, foi-se o muro de Berlim (1989 - e com ele a última divisão que a Alemanha experimentou entre República Ocidental e Oriental), mas a verdade é que o nazismo continua eternizado nas consciências e nas páginas da história, sempre à espera de um novo olhar, de uma nova visita, de uma nova compreensão, especialmente para que a atmosfera nele reinante “nunca mais “se repita...
  12. Como bem ensina Agamben, não foi pouco o legado que restou de Auschwitz e, nesse sentido, talvez a mesma passividade condenada no passado hoje ainda ocorra e se reproduza, apenas sob diferente roupagem...
  13. Que a Alemanha parece ter aprendido o “recado” de lidar com o seu passado para construir um novo e melhor futuro, parece não haver dúvida. Todavia, o mesmo não pode ser dito de outras nações que enfrentaram ou enfrentam questões traumáticas...Em duas palavras: que dizer da impunidade da ditadura militar no Brasil e a angustiante situação atual da causa Palestina?
  14. Ao contrário do que fez a Alemanha, difícil compreender que estejamos realmente preparados para o porvir, especialmente quando os pelo menos vinte e um anos de Ditadura Militar (1964/1985) ainda não foram depurados, continuando como “ferida” nacional aberta impune e latente....(e para mostrar o quanto estamos atrasados para enfrentar este fantasma, basta olhar para a polêmica criada e fomentada pela grande mídia em torno do “Plano Nacional de Direitos Humanos).
  15. De outro lado, a marginalidade da causa Palestina, a compreensão do muçulmano como “terrorista”, a intolerância com a diferença e a necessidade de entendimento sobre divisão de território, são apenas algumas questões marcantes (e preocupantes) no contexto da geopolítica mundial,quase toda ela totalmente favorável ao que está sendo feito por Israel, verdadeiro processo de inversão histórica em que as vítimas de ontem estão assumindo a posição dos algozes de hoje, tudo isso ocorrendo com a omissão e a inércia da ONU
  16. Never more... Será mesmo? Muitos exemplos atuais dão conta de que a humanidade parece não ter aprendido com as agruras do nazismo, o que por vezes impede a construção de um futuro melhor e comum....Tempo de repensar e aprender com os alemães. Hora de buscar lição no passado para enfrentar o presente e construir um futuro melhor. Afinal, como ensina Eduardo Galeno: "Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, no guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. (...) As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias".


3 comentários:

  1. Belo texto Márcio... Vale lembrar também o velho mas ainda em voga genocídio à brasileira: Um massacre real e presente que impõem taxas e impostos sobre os alimentos mais básicos, causando uma chacina aos povos menos desfavorecidos socialmente. A mesma porcentagem empurrada goela abaixo para insatisfação dos pobres, é gasto fictício e de caráter invisível partindo do bolso dos mais "bem sucedidos".

    abraços.

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  2. Realmente, há que ser levando em consideração. Devemos olhar para trás para conseguirmos enxergar à frente. Vale lembrar as palavras de George Santayana:"aqueles que não podem lembrar o passado, estão condenados a repetí-lo".
    Mais um brilhante artigo. Forte Abraço.

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  3. Olá Márcio

    Gostei da sua exposição sobre o Nazismo. Entretanto, por que os EUA também não foram condenados por jogarem 2 bombas atomicas sobre o Japão? Pelas atrocidades feitas no Vietnam? Pelas atrocidades no Iraque e outros? Sabe porque? Por que são americanos e ninguém vai falar nada. Quanto ao Brasil, quer ditadura maior do que a que está aí? Você paga um imposto violento. Não tem saúde pública, educação, etc... e aqueles que na época dos Governos Militares (prefiro chamar assim)combatiam, na intenção de tornar o Brasil um país comunista não sei se vc sabe disso, quando tiveram a oportunidade de mostrar trabalho o que fizeram? Alta corrupção. Então ditadura maior é a que estamos vivendo onde vc não vê os cadáveres pois eles não estão em campos de concentração mas sim, nos hospitais na falta ou precaridade de atendimento e olha que paguei foi CPMF e pelo visto vou pagar de novo, no meio das ruas,etc. De qualquer forma parabéns pelo seu blog.

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