domingo, 22 de abril de 2012

"A Questão da USP" na reflexão de Florestan Fernandes: uma leitura contemporânea



“Lembrei aos colegas o que se sucedera com o advento do nazismo na Alemanha. Não podíamos ‘lavar as mãos’. Era preciso denunciar seja o sentido da evolução política da ditadura, seja a maquinação contra a universidade e a sua função crítica” Florestan Fernandes

1. Uma descoberta válida para se refletir sobre a passagem de mais um aniversário de nossa sombria e abominável Ditadura Militar e, ao mesmo tempo, atualizar a problematização do que se espera da universidade brasileira, está na obra “A questão da USP”, do extraordinário sociólogo Florestan Fernandes.

2. Não se trata aqui de falar dos episódios recentes e polêmicos que envolveram a Universidade de São Paulo tratados de forma um tanto quanto deturpada pelos meios de comunicação de massa. O foco é outro, embora o produto também sirva para desnudar uma melhor e mais crítica perspectiva  sobre os referidos cenários, especialmente quando vige uma governança bandeirante um tanto quanto afeita a “choques” de ordem em detrimento da cidadania (e aqui poderíamos citar dois episódios de barbárie em 2012:  “cracolândia” e Pinheirinhos).

3. O livro, que começa analisando a Universidade de São Paulo no duelo entre mito e realidade, tem a importância de descrever o processo de construção histórica da instituição desde o surgimento na década de 30 até a formação dos seu primeiro cinqüentenário quando da publicação da obra, ocorrida em 1984, já vinte anos depois da eclosão nefasta do regime militar, situação que resultou na “antiuniversidade” como instrumento de normalização e dominação, vícios ainda presentes de algum modo aqui e acolá tamanho o trauma propiciado.

4. Muitas lições podem ser extraídas da obra de Florestan Fernandes, não apenas a constatação do quanto as pessoas e as instituições podem sucumbir pelo corporativismo, pânico e pelo discurso individualista do medo, quando não pela covardia. Florestan deixa muito clara a compreensão de que a inércia e a crise dos intelectuais orgânicos vinculados à uma instituição-chave como é a universidade para o desenvolvimento do país pode ser absurdamente nociva e prejudicial a construção do futuro. Como um desses exemplos, cita o fato de Faculdade de Medicina da USP ter exigido a retirada daqueles que se insurgiam contra o regime para “preservação” do interesse coletivo, o que faz Florestan em certo ponto afirmar que “os inimigos não se encontram mais entre os adversários, mas nas próprias hostes dos companheiros”.

5. A obra deixa muito clara, na sua fundamentação, a importância da universidade brasileira trilhar caminho próprio e autêntico de modo a romper com o modelo europeu eurocentrista de colonização do saber para se preocupar com os seus próprios problemas, com aquilo que a realidade nacional coloca na rua, numa verdadeira “epistemologia do sul” (Boaventura).

6. Se é bem verdade que hoje não temos mais Professores recitando cursos inteiros em francês ou latim, devido ao contexto de mercantilização do ensino, do subfinanciamento das universidades públicas, bem como da falta de processos seletivos adequados para captura dos verdadeiramente vocacionados sob o ponto de vista ideológico para cumprimento da função vital que se espera de um Professor, entre outros problemas, certo é que muitas instituições e profissionais estão longe de representar a referência que se espera que uma universidade represente do ponto de vista substancial e formativo para o crescimento do país.

7. Mais do que isso, a história narrada por Florestan deixa evidente a importância dos intelectuais não subestimarem a força de resistência que possuem, nem mesmo ignorarem o potencial que dispõem para embalo e promoção de melhores e maiores transformações na sociedade. No episódio narrado, se é bem verdade que faltou força (e coragem) à muitos que estavam “dentro dos muros” da universidade para enfrentamento mais ostensivo e incisivo da ditadura (e nesse contexto, muitos foram “ursos amestrados” a “dançar de um lado para o outro” – como diz Florestan), não se pode negar o fato de que muito do período mais duro foi protelado com posturas de critica e de enfrentamento, sendo que um dos representantes mais legítimos desse grupo foi o próprio Florestan Fernandes.

8. Numa das partes mais ricas do livro, denominada “A Ilusão da História”, Florestan resolve dar de modo mais direto seu testemunho, certo de que há um “dever de enfrentar essa recapturação da memória”, afinal, a Ditadura Militar (que se denominava cinicamente “Revolução” a pretexto de mobilizar “forças vivas da sociedade”),  é  uma verdade que "não pode ficar nas mãos dos que praticaram a repressão e deram o golpe”, justamente por entender Florestan que uma universidade não vive só de glórias e, ao contrário, (e com o homem por vezes não é diferente), também “precisa de experiências amargas, de sofrimento, de perseguições para enrijar e florescer”.

9. Neste capítulo do livro duas histórias chamam atenção. Nelas Florestan demonstra a importância da coragem intelectual de dizer e defender o que se pensa em nome do interesse coletivo.

10. A primeira se deu quando Florestan, convidado e buscado pessoalmente pelo oficial Marechal Castelo Branco, em 1962,  para uma fala em curso dirigido aos oficiais do Estado Maior do Segundo Exército, defendeu que ou o ensino fechado militar deveria sofrer uma revolução ou deveriam os militares freqüentar as escolas de ensino superior para calibração de talentos para que pudessem desempenhar papéis em todos os setores institucionais da sociedade, núcleo da exposição. Segundo o próprio Florestan, que um colega de mesa presente na ocasião indagou se estava louco, “depois disso, nunca me convidaram para mais nada“. 

11. A segunda história se dá na descrição dos recursos de intimação utilizados pelos militares em plena Ditadura, que incluíam diversos expedientes. Um deles era a promoção de  buscas policiais de pessoas de modo ostensivo em locais onde se sabiam essas não estar, não por uma finalidade justa, mas simplesmente para gerar pânico. Outras estratégias iam da formação de listas dos famigerados inquéritos policiais militar passando pela  operacionalização do serviço de espionagem até a prisão pura e simples. Como diz Fernandes, “no fundo, o ‘pânico circular’ era o grande objetivo”. Foi assim que, quando surgiu a “lista de expurgo”,  listado para comparecer à inquirição, limitou-se a apresentar uma carta de protesto (que segundo Florestan a ele era  um “protesto anódino que estava longe de conter o que devia ser dito), situação que não só rendeu sublinhados em vermelho de parte do oficial que lhe interrogou, como também a resistência de Florestan até as últimas conseqüências em manter a sua postura, mesmo sem nenhum apoio institucional, o que custou sua prisão, que somente se estendeu por três dias por conta da mobilização de estudantes e do estrépito gerado pela sua custodia. Nas palavras dele, depois de uma “conversa amarga” com o Diretor da Faculdade, que pedia que este reconsiderasse sua posição e retirasse o protesto, pois estaria pensando só nele e não na instituição, na família, respondeu Florestan:  “Retruquei que não me cabia dar mau exemplo a assistentes e auxiliares. (...) Os meus filhos, a minha esposa e a minha mãe vão ficar orgulhosos de mim, aconteça o que acontecer, e eles já estão prevenidos. (...) Sou obrigado a fazer o que faço porque a Faculdade se omitiu. Cabia à Faculdade repelir a afronta desse inquérito policial-militar, não a mim”. Florestan entende que a pior das tragédias seria a universidade ter que “comer no cocho da ditadura”, o que para ele não podia ser feito, nem que isso custasse a liberdade.

12. Na obra, entre tantos ensinamentos,  Florestan Fernandes demonstra como a Reforma Universitária e a luta por mais espaço democrático e mobilização popular passou a ser uma ameaça aos militares, o que exigiu que tivessem feito o que fizeram.

13. Em tempo de resgate da primavera dos povos, de manifestações, de mobilizações, de indignados e movimentos de ocupação nas praças e cidades, de se questionar quem é que representam quem ou o quê,  é de se esperar que as instituições de ensino superior, não só públicas, mas também privadas, cumpram com o seu papel social e cultural que delas se espera. Aqui reside a grande vitalidade e atualidade do texto de Florestan Fernandes.

14. A propósito, desde há muito que a universidade não pode(ria) ser uma "instituição de ponta" feita “das elites para as próprias elites”. Contudo,  contraditoriamente a isso, num enredo em que o financiamento da extensão e a inserção social das universidades ainda é extremamente deficiente, não obstante existam pontuais e excepcionais bons exemplos, de modo geral as políticas de ação afirmativa ainda não são uma realidade obrigatória e consolidada em todo o território nacional, prova de uma autonomia universitária que ainda é utilizada às avessas.

15. Refletir sobre até que ponto o impacto sentido pelas instituições do ensino a partir da experiência da  regime militar serviu de experiência e lição para explicitar o complexo e desafiador papel moral, social, político, cultural e educacional a ser desempenhado  pelo conjunto da universidade brasileira é uma questão que precisa ser recolocada, inclusive no que diz respeito às questões e os reflexos históricos e jurídicos decorrentes desse período. 

16. Como diz Florestan na introdução de seu livro, num primeiro plano, espera-se que não só a USP, mas qualquer outra universidade, especialmente se for pública, saiba manter uma relação inconformista firme, ardente (e ao nosso ver permanente) com a “instauração de uma ordem social verdadeiramente democrática”. Isso implica, muito mais do que lembrar e trazer à memória o tempo triste da Ditadura Militar, na mobilização para que as questões relacionadas ao interesse coletivo, tais como a absurda anistia, até aqui vigente e chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, possam ser revistas e discutidas com a profundidade e os atributos de espírito (e revolução) necessários. 

17. Em tempos de quatro anos da crise do capitalismo no mundo, de um bilhão de pessoas passando fome, de escoamento de recursos públicos com a corrupção e com obras públicas realizadas em regime de exceção para megaeventos da "Copa do Mundo" e "Olimpíadas", fico pensando o que Florestan Fernandes diria da aparente falta de mobilização nacional mais concatenada e efetiva da comunidade universitário-acadêmica docente e discente quanto a esse e outros aspectos que ainda perturbam a realidade nacional. No “busílis” da questão, expressão tão cara à Florestan, parece estar, ainda, certa anestesia social quanto a compreensão desses problemas, bem como certa incapacidade de percepção e de reação de todos por mudanças, por mais que essas possa estar sendo cada vez mais praticada por iniciativas emancipatórias de uma contra-globalização (Boaventura) praticadas aqui e acolá num mundo ainda em transe (que também nos faz sentir saudade do cinema de Glauber).

18. Encerrando com esperança, que precisa habitar e residir muitos lugares "não comuns", especialmente  o campo da universidade, que fique patente que o período de trevas serviu mesmo “para limpar o horizonte intelectual” da comunidade acadêmica e, via de conseqüência,  “desvendar uma consciência mais realista, crítica, responsável, exigente e democrática do que deverá ser a universidade em um país pobre e atrasado como o Brasil”.  A “Questão da USP” foi escrito em 1984, mas de lá para cá nada mudou. Como bem adverte o corajoso e singular Florestan, “fatos são fatos”.

domingo, 25 de março de 2012

Notas sobre Direito & Música



“A tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem” Theodor Adorno

O Direito é um produto cultural, enunciação praticamente livre de maior controvérsia ou dissenso.

O papel da cultura em tempos pós-modernos, sabemos, está muito longe de ser uma possibilidade de emancipação, pairando a dominação pelo discurso do capital, do consumo e da alienação. O ponto toca a desagregadora “indústria cultural” já referida por Adorno, a necessidade de discutirmos uma nova ideia de cultura, como, por exemplo, propõe Terry Eagleton.

Ocorre que este hermético e muitas vezes incompreendido e hermético universo do direito, ao pretender lidar e disciplinar com os maiores bens da vida e dos seres humanos, também depende de amor e sensibilidade na criação e aplicação de suas normas jurídicas (e sociais, não esqueçamos). Esta uma das tantas inesquecíveis lições de Warat e de outros tantos juristas preocupados com um ensino e uma transmissão responsável do Direito, do seu reconhecimento identitário como instrumento de transformação da perversa realidade social, ainda distante muita poeira e léguas dos pretensiosos objetivos da República (artigo 3o, Constituição)

De outro lado, a música é uma expressão da arte com suas métricas, intervalos, acordes e tons, enfim, com sua epistemologia própria, campo da criatividade que, da mesma forma que preza a disciplina do ensaio, sabe o valor (e o sabor) do tempero de uma improvisação (como no jazz).

Não é preciso muita reflexão para perceber que o direito de hoje (em crise desde há muito, como quase todas as instituições da transmodernidade) precisa desesperadamente da arte e de todas as expressões culturais como remédios vitais capazes de lhe emprestar um novo, autêntico e criativo sentido.

O Direito, para além dos mecanismos tradicionais de sua circulação, também depende da música como instrumento de estímulo à sua vocalização e compreensão mais democrática e popular.

O Direito "achado na rua", defendido por Boaventura de Sousa Santos, com música, pode ficar mais fácil de ser localizado e aproveitado.

Definitivamente já passou da hora de se pensar na música como canal para ensino, debate crítico e verdadeira popularização do direito, aspecto último que integra a elogiável pretensão do “Estado de Direito”, importante veículo que, organizado pela engajada Carmela Grune, possui e divulga importante e original projeto contrahegemônico chamado “Direito no Pé e Samba na Cabeça”(basta acessar youtube e conferir). Já que o direito é cultura, e cultura é samba, nada melhor do que um produto da expressão popular para fazer o juridiquês entrar no ritmo da rua, da favela, da batucada. Uma roda de samba pode ser o começo de e nova sonoridade e alteridade jurídica. Por que não?

Se Direito positivamente precisa predominar “kantianamente” como elemento de razão, basta acrescentar uma pitada de música para que seus tecido ganhe um pouco mais de textura, cor, ritmo, contraste e sensibilidade. Ou o Direito faz questão de não se fazer ouvir?

Não por acaso alguns diferenciados artigos ou mesmo textos jurídicos abrem com alguma citação ou transcrição musical. Perceba-se que a música comporta “fala” com transcendência, mutabilidade e circularidade foucaultiana, “caixa de ferramentas” reveladora daquilo que não propriamente não se revela pela letra fria e disciplinada da escritura.

Lembro aqui do sempre genial Alexandre Morais da Rosa citando Nei Lisboa no clássico e imperdível Decisão penal: bricolage de significantes e significados: “não ando do lado da lei, a lei não foi ideia minha…". E poderia continuar: lamento que o mundo não gire, na velocidade que eu queria.

Tal como a literatura traz a narrativa e a vida para iluminar e encorpar o Direito (e o excelente programa Direito e Literatura da TV Justiça comandando pelo singular Lênio Streck é a prova cabal do poder deste casamento), a música, tal qual outro estado das artes (teatro, cinema, dança) também pode ser um decisivo instrumento, um verdadeiro "pé de cabra" para forçar o Direito a sair do seu labiríntico e inacessível Castelo kafkiano para aproximar-se à rotina das pessoas que dele dependem, cotidiano do qual cada um extrai sua filosofia, como bem ensina Agnes Heller;

A música, portanto, pode ser veículo de crítica, transporte e aproximação do Direito com a realidade, pois mais do que nunca há de se querer um direito vivo, pulsante e verdadeiramente plural (Wolkmer).

Afinal, nessa proposta de união entre direito e música, se queremos um direito realmente latino-americano e descolonial, de "libertação" (Dussel), como acertadamente é a proposta de muitos, que façamos opção por um estilo propriamente cultural e afeto à nossa realidade tupiniquim, não havendo melhor e mais genuíno retrato comunitário dessa expressão do que, por exemplo, o samba, que se fizer a sala de aula formar uma "roda", por exemplo, já estará contribuindo para renovar o desgastado formato do ensino jurídico.

Lembro do grande e saudoso Mestre Warat dizendo que para os lidadores do direito bom seria exigir alguma demonstração explícita artística (mais de vontade do que de talento) como prova de proficiência para demonstrar cota mínima e necessária de sensibilidade exigível no trato rotineiro de valores e vidas humanas. Segundo ele, dançar (ou interpretar) uma música, recitar um poema, tocar um instrumento, apreciar elementos críticos no cinema, alguma dessas empreitadas obrigatoriamente teriam que ser experimentadas e praticadas pelo jurista, sob pena de se ter este como desabilitado para seguir adiante no seu ofício...

A música pode trazer novas práticas de inclusão ao velho mundo do direito, o qual por não poucas vezes teima se constituir em espaço de exclusão pela palavra. Por isso também passa a oxigenação e depuração democrática da linguagem elitista (burlesca e burguesa) do direito. Diz-se isso porque falar sobre música também é tocar no baú da linguagem como instrumento de instrumentalização (e compreensão) do proprio Direito.

Como bem lembrou recentemente o arejado Professor Vladimir Passos de Freitas, “Direito e música é tema rico e pouco explorado”. Como ele bem registra, quem lembra das músicas brasileiras que balançaram os porões da Ditadura? Como desconhecer o valor de “Saudosa Maloca” do Adoniran Barbosa para discutir posse, propriedade e o prório direito fundamental à moradia? Como ignorar a sabedoria de um Bezerra da Silva para retratar cenas do cotidiano policial e a seletiva criminalidade de periferia? Que dizer então das sábias reflexões e baladas de um ícone como Raul Seixas?

Existem outros inúmeros bons exemplos. Entre outras iniciativas, merece destaque um projeto desenvolvido em parceria pelos cursos de Música e Direito da Universidade Federal do Sergipe, envolvendo trabalho dos Professores Christian Alessandro Lisboa e Carla Eugenia Caldas Barros (ver http://direitonamusicaufs.blogspot.com.br/). De outro lado, no Rio Grande do Sul, os Professores Salo de Carvalho, Felipe Moreira de Oliveira e Moysés Pinto Neto já perceberam a potencialidade da música para ilustrar debates jurídico-penais, como pode ser conferido no blog “Criminologia de Garagem” (http://criminologiadegaragem.blogspot.com.br/). Ou alguém tem dúvida de que, inspirado no rock, não fica mais contextualizado lembrar o quanto a dogmática penal (e outros ramos do direito) precisa de irreverência, rebeldia e contestação?

Em linhas finais, não se olvide que a Música, como o Direito, depende da pré-compreensão, travessia que tem na hermenêutica e interpretação aspectos decisivos à obtenção do valor justiça. É nesse caminho aliás que devemos abordar de modo diferenciado a questão dos direitos autorais, campo onde barbáries jurídicas e verdadeiros estados de exceção "agambenianos" (ex: SOPA, PIPA e outros) estão sendo praticados (mas precisa ser tema de outro “post”).

Música, como lei, não se executa mecânica e assepticamente, ao contrário, se interpreta!

Se a vida sem música seria um erro, se a música também está aí no mundo para aliviar o sofrimento do ser, como lembra Nietzsche, e se o direito, de outro lado, precisa pautar-se pelo paradigma filosófico da vida concreta (Celso Ludwig), bem se percebe que combinar direito e música é um arranjo contemporâneo mais do que urgente e necessário.

Aos que não querem o Direito como “ouro de tolo”, como figurativamente ensina Raul Seixas, aos que não desejam ver o Direito “sentado num trono de um apartamento com a boca cheia de dentes [e normas] esperando a morte chegar”, “longe das cercas [jurídicas] embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê” que sabe não há de se assentar “a sombra sonora” de algum “disco voador”.

São as “aguas de março deixando o verão” e talvez trazendo um pouco mais de esperança e “promessa de vida” no coração…do Direito.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Pinheirinho...um caso para (não) esquecer!



“Se o senhor não tá lembrado, dá licença de contá...(...) que aqui onde agora está...(...) mais um dia nóis nem pode se alembrá, veio os homi com as ferramenta e o dono mandô derruba (...) que tristeza nóis sentia, cada tauba que caia”

Adoniran Barbosa

É difícil de acreditar que o corporativismo e uma disputa mesquinha de competência federativa entre Justiça Estadual e Federal, entre outros fatores irracionais impensáveis (ou simplesmente ainda não descobertos), tenham inspirado o Tribunal de Justiça de São Paulo a cumprir tão mal e perversamente sua “missão cívica de “distribuir justiça” como ocorreu há menos de uma semana.

“Pinheirinho” representa tudo, menos o diminutivo do seu próprio nome. Simboliza a expressão de um Estado (e de um povo) sem Justiça.

Um canetaço vindo (e “sob comando, risco e responsabilidade”) da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo em meio a uma “consulta” (e outras coisas mais) e uma postura lamentável do Juízo de origem serviu para envergonhar um Poder Judiciário já um tanto pressionado e acossado como instituição nos últimos dias.

A pretexto de uma “reintegração de posse”, no ritmo de balas de borracha, bombas, gás e muita violência (que não poupou mulheres e crianças), moradias e sonhos foram destruídos em meio a uma parafernália de máquinas e de uso desproporcional de uma força policial que pode ser tudo, menos comunitária. USP e “cracolândia” que o digam...

Vai ver é a “celeridade” (rapidez seletiva), a “modernidade” (no que tiver de mais liquido e pior) e “acessibilidade” (só se for aos interesses patrimoniais capitalistas), valores e características que constam no “planejamento estratégico” da Corte Paulista. Nem a mais terrível “improvisação” poderia ser tão nefasta à essa ação arquitetonicamente “planejada”. Muitos e incalculáveis são os seus resíduos e entulhos.

A comunidade estava ocupando apenas parte de um gigantesco terreno, simplesmente vivendo e, segundo consta, inclusive respeitando o meio ambiente. Prova da vida e atmosfera comunitária existente é que até biblioteca havia no local...Mas isso, claro, não interessa ao mundo dos negócios e da mega especulação imobiliária. Há muito mais em jogo...siga la pelota, como diria um conhecido narrador de futebol.

Decisão da justiça não se discute, se cumpre? Na, na, na (ji) na(ja), nada disso Senhor Governador, pelo menos não nesse caso. A “jogada” parece ter sido mais do que ensaiada. A curiosa e constrangedora declaração dada “tendo em vista o noticiário sobre o episódio do Pinheirinho”, dizendo que o “Executivo do Estado, como era dever constitucional seu, limitou-se à cessão do efetivo requisitado pelo Tribunal de Justiça” fala por si só.

Para definir o que houve não há outra palavra a não ser barbárie. Barbárie praticada, veja só, justamente por uma das instituições que deveria resguardar o Estado Democrático de Direito. Isso tudo quando as notícias dão conta de um acordo que teria sido entabulado envolvendo os “proprietários” interessados e representantes governamentais.

Até agora não consigo entender a postura esdrúxula do Tribunal Paulista no episódio Pinheirinho, em São José dos Campos-SP, capaz lembrar das atrocidades históricas dos piores e mais violentos bandeirantes. Um dano moral coletivo à imagem do Poder Judiciário como esse é de proporções difíceis de calcular.

E olha que no já referido “mapa estratégico”, no planejamento do Judiciário paulista, a missão é “ser reconhecido como instrumento efetivo de justiça, equidade ou paz social”... até parece brincadeira.

Um Judiciário que nega e ignora solenemente direito fundamental e constitucional de moradia para atender a interesse de especulação imobiliária ou mesmo que seja para “reafirmar sua autonomia” merece o desprezo e a repulsa firme da sociedade, quando não dos meios de comunicação social (que só para variar informam muito pouco sobre o histórico do caso), por mais desarticulada que essas instâncias ainda estejam.

É impressionante como, por vezes, o Judiciário resolver ser protagonista exatamente naquilo que não lhe cabe. É o verdadeiro “ativismo” às avessas. A propósito, gostaria de saber quantas decisões a Corte Paulista já emitiu para serem cumpridas de surpresa em pleno repouso dominical, seguida de heterodoxa declaração oficial de “isenção de responsabilidade” dos órgãos de segurança pública do Estado.

Se um Secretário de Articulação Nacional representante do Governo Federal chegou a sentir na pele a violência, imaginem as violações que não foram praticadas com as famílias que se encontravam no local resistindo em legítima “desobediência civil”.

A forma patológica como algumas situações se repetem no higienismo paulista precisa ser estudada em laboratório. Vai que este mal tem cura..

Não esqueçamos da co-responsabilidade que o Superior Tribunal de Justiça assumiu neste caso. Tratou um conflito de competência simplesmente ignorando o que havia no fundo, descumprindo papel conciliatório e integrador que se espera de um Tribunal que se diz da “cidadania”.

E o sempre barulhento e costumeiramente midiático Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não fará nada? Será que para este tipo de postura alienada poderá ensejar o surgimento extravagante de uma nova “meta”? Olha que a competência originária do CNJ foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal na data de hoje. Como bem diz o magistrado Gerivaldo Alves Neiva, ah se fosse um juiz singular o responsável por esta grotesca violação de direitos humanos...certamente a essas horas já estaria sendo preparado e exportado para os trinta graus negativos da Sibéria, quem sabe ganhando uma “aposentadoria compulsória”...

Em tempo, estou tentando descobrir, também, qual foi a medida adotada pelo Ministério Público paulista no episódio (se alguém souber, me avise).

Por enquanto, a esperança tem abrigo, mais uma vez, no papel das Cortes e Organizações Internacionais, as mesmas que repudiaram Belo Monte, Anistia aos torturadores da Ditadura e muito mais, sem que isso não tenha provocado mudança alguma...prova de um país ainda torto e sem projeto, exemplo de uma nação que por vezes (muitas vezes) não sabe o que faz em nome dos seus poderes de Estado e da sua soberania. Prova de uma internacionalização que somente serve ao mercado...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Coréia do Norte, depois da morte de Kim Jong Il…


1. A divisão da Coréia, ocorrida em 1948, pós II Guerra Mundial, decorrência da invasão japonesa, deixou a face norte sob comando da então União Soviética (URSS) e o sul aos cuidados americanos, primeiro exemplo de divisão de um país como decorrência do cenário histórico conhecimento como "Guerra Fria".

2. Desde a Guerra das Coréias (1950/1953) fala-se na reunificação da península coreana, situação ainda ilusória na realidade atual.

3. O fato é que a Coréia do Norte tem sido palco para déspotas desde o seu surgimento, em 1948.

4. O último “governante”, o excêntrico Kim Jong-il, filho do fundador do país (Kim II-sung – falecido em 1994), morreu no último 17 de dezembro de 2011, dia de número idêntico à quantidade de anos que esteve no poder.

5. Diante do ocorrido, mais uma vez, é de se questionar qual o futuro do país e até que ponto a aliada China tem uma certa parcela de responsabilidade por subsidiar e apoiar a particular prática política atualmente vigente em solo norte-coreano. Que dizer, então, da política de relações externas da Rússia, do Japão e até mesmo da Coréia do Sul, outros países vizinhos que circundam a espremida Coréia do Norte.

6. Até que ponto a Coréia constitui um “eixo do mal”, um espaço de permanente violação de direitos humanos, de perpetuação do isolamento, de seqüestros, campos de concentração, desnutrição e miséria, é assunto que precisa ensejar maior informação e reflexão.

7. Que estamos diante de uma sociedade brutalmente militarizada e homogênea (e de certa forma fanática), disso não resta dúvida. As imagens das apresentações perfiladas e de cega disciplina do temível Exército Popular da Coréia são brutalmente significativas, bem demonstrando, não por acaso, o que seria o quinto exército do mundo, contendo mísseis, arsenal nuclear e, segundo se estima, um milhão de leais e hierarquizados recrutas. Um milhão: o mesmo número aproximado de pessoas que teriam morrido devastados pelo caos de fome e miséria que, no colapso do sistema de distribuição de alimentos, varreu o país em meados dos anos 90 por conta do “regime” já em curso, o que ocorreu após a morte do “pai” de uma nação que, nas suas palavras, haveria de ser forte e próspera (“strong and prosperous nation”).

8. Até que ponto a influência da não religião ou mesmo uma origem confucionista ou budista tem algo a ver com o contexto norte-coreano é um palpite ainda difícil de arriscar. A existência de liberdade religiosa na Coréia do Norte é assunto um tanto quanto controvertido. Aqui não cabem muitas das irresponsáveis afirmações feitas em relação ao demonizado Islã.

9. Por falar em liberdade, o país ocupara o penúltimo posto para exercício da liberdade de imprensa, perdendo apenas para a Eritréia, conforme relato do Repórteres sem Fronteiras. Exemplo disso decorre do fato de que a morte do “grande líder” somente foi divulgada oficialmente à imprensa mundial (e local?) somente após dois dias depois do fato acontecido.

10. A respeito de tudo isso, o fato é que a Coréia do Norte e seu futuro segue sendo um mistério e, incrivelmente, um território “de exceção” (Agamben) de certa forma distante da malha da globalização, um espaço onde o mundo externo parece pouco influenciar na dinâmica interna das coisas, exceto nas bordas e nas fronteiras do país, onde a sedução pelo capitalismo sul-coreano e pelo “mercado” chinês certamente existe e exerce sua pressão.

11. Apesar de tudo, o copioso choro desesperador e massivo nas ruas da capital Pyongyang revelado na mídia internacional em decorrência da morte do “dear leader” (segundo muitos, em proporção substancialmente menor à morte do “grande líder” anterior em 1994), cômico, caricato e aparentemente patético, pode ser legítimo e verdadeiro, sendo explicável pelo “viciado” ambiente, opinião de alguns especialistas que examinaram as imagens que causaram perplexidade (ou risos) ao “mundo ocidental”. O fanatismo e a ignorância, sabemos, muitas vezes andam lado a lado. Não se olvide também do medo e do culto à personalidade que qualquer ditadura embute, especialmente quando há controle da comunicação e de observadores externos de parte do Estado. Qualquer semelhança com a China de Mao pode não ser mera coincidência.

12. Enquanto a “primavera” não chega no rígido inverno democrático norte-coreano, resta aguardar e acompanhar como será a estabilidade ou não da dinastia da terceira geração da família no poder, no caso, o governo de Kim Jon Un. Será que há espaço para algum tipo de movimento de abertura reformista ou, ao contrário, deverá sobrevir uma radicalidade ainda maior? Será que o tempo de estudo na Suíça trouxe algum tipo de diplomacia diferente ao “great sucessor Young Kim” ou Pak Un (como era conhecido no tempo de escola) ou, ao inverso, ele irá administrar ao estilo explosivo que teria como apaixonado e competitivo jogador de basquete apaixonado pela NBA e com menos de 30 anos de idade? Que tipo de produto social e político o regime norte-coreano continuará gerando, só mesmo o tempo vai dizer.

13. Uma coisa é certa, diferentemente de outras ditaduras ruídas em 2011 por mobilização popular, o mesmo não deve acontecer com a sucessão natural e nepotista, ao melhor estilo “founding family” na distante Coréia do Norte. No próximo mês de abril, data de comemoração do centésimo aniversário do criador do país, será uma oportunidade para presenciar como estará, na “totalidade” do duplo sentido, a situação da Coréia do Norte e seus aproximadamente 24 milhões de habitantes.

14. Até agora tudo o que sabemos é que do binômio “força” e “prosperidade”, lema da nação norte-coreana, a primeira expressão está representada no arsenal militar nuclear e bélico, já a segunda ainda espera uma descoberta ou revelação consistente, exceção feita ao presumível convencimento de uma supostamente consistente (e complacente) elite local que, por certo, tem muito a lucrar e se beneficiar com a perpetuação do atual regime. Não são poucos os minérios da Coréia do Norte, assim como muitos "pagam", outros além da família Kim e dos lideres militares certamente ganham, e muito, com tudo isso.

15. O mais importante de tudo, nesse contexto, é que a Coréia (e seu regime) possam ser pensados a partir dos fatos históricos e de uma perspectiva crítica que cuide com as armadilhas sempre perigosa do senso comum, inclusive midiático, por mais que o medo seja realmente desconhecido. A leitura do reconhecido livro de Bradley K. Martin (Loving Care of the Fatherly Leader), ao trazer recortes informativos sobre a dinastia dos “Kim” (para muitos o que há de melhor na leitura da Coréia do Norte), pode ser um começo...what is next?

sábado, 10 de dezembro de 2011

Lembrando Warat: “Ciência jurídica e seus dois maridos”(parte 1).


1. A postagem de hoje aproxima caminho com a primeira pessoa, pelo menos na narrativa, pois não há como falar de Warat sem tentar ser um pouco original e, porque não dizer, minimamente autoral. Se este blog um dia teria de fugir ao formato de artigos propositalmente impessoais, ninguém melhor do que Warat para autorizar e legitimar a estréia, aqui e agora, de um novo formato, pelo menos por hoje. Afinal, não há como pensar em Warat sem deixar que a subjetividade e a emoção tomem conta do texto, alastrando-se no “jogo de linguagem” por vir, que para ficar ao gosto waratiano, precisa fluir livre das regras que aprisionam, funcionando como verdadeira “caixa de ferramentas” para que cada um retire o que achar e julgar de melhor (e nas aspas aqui vale lembrar de Witgenstein, talvez Foucault...).

2. A idéia da presente postagem é explorar, com todas as limitações próprias do guia turístico que ora se apresenta, o maravilhoso mundo (este sim sempre novo) que há no largo e libertário horizonte da rica produção teórica de Warat, a qual tem no livro “Ciência Jurídica e seus Dois Maridos”, ao meu ver, um dos seus maiores e principais marcos.

3. Este genial livro, que bem poderia ser leitura obrigatória aos alunos recém ingressos nos cursos de Direito, definitivamente, tem muito a dizer. Basta colocar as lições deste livro na bagagem oscilante e trepidante da “carroça jurídica” e as melancias certamente se acomodarão, como bem anuncia o titulo do primeiro capítulo.

4 . Antes de mais dizer, melhor deixar a palavra livre de usurpação de "sentido" com a verdadeira bússola que é Warat. Por conta disso é que apenas arrisco chutar um tópico seguido da arbitrária seleção de algumas passagens, as quais, longe de terem sido extraídas e pinçadas ao longo de um capítulo, acreditem, decorrem de escolha feita em gigantescas, incríveis e memoráveis 4 páginas!

A ver:

5. A poesia como começo:

“Por onde começar? (...) tenho clara a escolha de um titulo e o sabor de um discurso inesperado, o qual, como o sonho, pode fazer falar tudo, até o que em mim é estranho. Escrever é sempre correr o risco de devolver ao desejo sua liberdade”

6. De cara, a prova do gosto e fusão do direito com a literatura (ou seria o contrário?):

“A Jorge Amado devo o titulo deste livro e a Cortázar a liberdade de usurpá-lo sem culpa e fazer estalar, em mim, o sentido precário de um romance sobre o imaginário, como passaporte para uma obra de mobilidade que tenha a porosidade de esponja em relação a todos os eufemismos normalizadores e a todos os códigos intolerantes e intoleráveis que cercam a sociedade”

6. A lucidez da diálogo entre ocidente e oriente em tempo de conflitos civilizatórios:

“uma ideologia da ordem e da totalidade – graças à qual o pensamento ocidental matreiramente define o mundo e nós”

7. Justificando a escolha de uma obra de Jorge Amado como inspiração para atividade criativa sobre seus personagens:

“Concretamente explodiu em mim a possibilidade do emprego das personagens de um romance, como entrada de uma rede de vozes com mil estradas. (....) Metamorfoses de personagens que me permitiram valer-me deles como metáforas tutoras de minha versão de mundo, da magia dos significados que portam a sensibilidade (...) Dona Flor e seus dois maridos como criaturas da linguagem, encarnam a possibilidade de um espaço onde se possa fazer a sondagem crítica de pontos de partida ou de chegada, que sustentam a versão congelada e sublimada da realidade. Personagens da fuga”.

8. A forma lúcida de enxergar criticamente o direito e seus “operadores”:

“Direito como expressão do amor e dos escribas da lei e sua alienada sabedoria”

9. A janela aberta para o jardim da psicanálise:

“a presença do outro como diferença (...)Flor (...) heroína da poligamia, dos significados e do imaginário erotizado. Um impulso vulcânico para viver (...) cuja grandeza está precisamente em haver aprendido a existir, pondo em risco o padrão de desejos instituídos (podados).

10. Uma importante pretensão:

“Desajustar toda submissão a um mundo sólido, material e uno (...) destronar essa idéia monstruosa que serve, com suma descrição, para que a cultura-detergente (empreendimento cultural que representa piamente um pensamento sem sujeira) penetre no nosso imaginário e o macule”

11. Explicitando a diferença de Teodoro e Vadinho:

“Teodoro conseguiu transformar o amor em dever (...) vivendo envolvo a um emaranhado de infinitos rituais burocratizantes (....) O amor de Vadinho (como eu imagino) não conheceu a morte, porque sempre foi um exercício de autonomia (...) Vadinho tem um imaginário que foge de todos os intentos de castração”

12. O que falta?

“Falta o sabor apimentado da marginalidade da ambivalência”.

Agora, infelizmente, falta (fisicamente, e tão só assim) LAW (Luis Alberto Warat). Todavia, ainda temos uma casa sólida para continuar. http://www.facebook.com/casawarat?ref=ts. Mais do que isso, sobram moradores para a gente conversar (Leopoldo Fydika, André Coppeti, Albano Marcos Bastos Pepe, Andrea Beheregaray, Gerivaldo Alves Neiva, Marcus Fabiano, Alexandre Morais da Rosa...). Que(m) mais?


OBS: Para quem chegou até aqui um convite (e desafio): encaminhe um “post” falando da biografia de Warat, contando uma história ou comentando alguma de suas obras. Ao autor da texto publicado no “Recortes Críticos” terei o maior prazer de enviar, com prazer, um exemplar de “Ciência Jurídica e seus dois maridos”.

OBS: Por justiça aos muitos e valorosos "waratianos" de plantão, a lista final é dinâmica..e simplesmente enumerativa, ainda que simbólica.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Gregório de Matos: um nacionalista satírico-revolucionário.


”Eu sou aquele, que os passados anos cantei na minha lira maldizente torpezas do Brasil, vícios, e engano”

(Gregório de Matos)

*Luiz Murillo Verussa Ramalho e Márcio Soares Berclaz.

1. No dia 26 de novembro de 1695, quase às portas de um novo século, fulminado por uma febre contraída no seu exílio da África e devastado por problemas particulares, saiu melancolicamente de cena o extraordinário poeta e advogado baiano Gregório de Matos e Guerra.

2.A educação sempre foi uma aposta. Nascido em Salvador, no dia 23 de dezembro de 1636, Gregório, filho de abastada família portuguesa radicada na colônia, não só frequentou o Colégio dos Jesuítas em solo brasileiro como, ainda, fez parte da exígua porcentagem de habitantes brasileiros privilegiados pela possibilidade de continuação dos estudos no além-mar.

3.Em Portugal, formou-se em Direito na famosa e conceituada Universidade de Coimbra, onde foi um aluno reconhecidamente brilhante. Apesar de tudo, o seu apreço pela sua origem era tanto que, ao invés de superestimar o diferencial dos recursos humanos em solo eurocentrista, Gregório chegou a taxar alguns colegas portugueses de abastados e verdadeiros medíocres, muito dos quais posteriormente exerceriam a advocacia e ocupariam cargos de destaque no governo português, crítica que de certa forma prenuncia como Gregório entendia e compreendia criticamente a posição de Portugal em relação ao Brasil.

4.Não há muitos registros que apontem as preferências e inspirações literárias do futuro poeta, sendo certo que as fontes utilizadas para saciar sua sede eram muitas e diversificadas. Sabe-se que Gregório, no entanto, era ferrenho admirador do autor castelhano Luis de Gongorra y Argote, de quem seus poemas irmanaram-se tanto estilisticamente quanto em relação ao conteúdo. O uso acentuado de figuras de linguagem capazes de imprimir ao texto um viés de caos e desequilíbrio (paradoxos, antíteses, hipérboles, etc) e a opção pela desenvoltura de um conteúdo mordaz e corrosivo com propriedade para criticar os hábitos e costumes dominantes nas respectivas terras, esses certamente são dois pontos comuns que merecem destaque e bem demonstram a articulação artístico-poética estabelecida entre ambos.

5.Sobre a colônia, sobre o Brasil feito colônia de Portugal, Gregório sempre teve muito a dizer. Bastou retornar ao país como jurista para Gregório desencadear sua produção literária na forma de poesia, ao ponto de ser considerado o primeiro poeta no Brasil reconhecidamente barroco e contemporâneo ao movimento seiscentista.

6.Sem embargo que a produção literária de Gregório de Matos comporte ramificação lírica, religiosa/sacra e satírica, é no último estilo que podemos encontrar sua grande contribuição para a necessidade de uma visão crítica e emancipatória quanto ao desenvolvimento do nosso país, prova de que um nacionalismo verdadeiro e genuíno bem demonstra que amar seu território e chão não implica em fechar os olhos para os problemas da realidade, ao contrário, talvez seja a primeira condição para desvelar a existência de condições que precisam ser superadas;

7.Entre a poesia lírica-amorosa de cunho sentimental e a poesia de índole religiosa ou sacra, entre o erro e a virtude, pecado e perdão, céu e terra, dilemas tipicamente barrocos, que contrapunham temas terrenos e espirituais, é possível constatar a imensa preocupação do poeta também com o Brasil e suas duras e agudas críticas àqueles que, a seu ver, engedravam esse contexto.

8.Sem prejuízo de que Gregório, na sua subversiva e transformadora produção, mediante linguagem notadamente truculenta, debochada, dirigida a um sem-número de pessoas, tenha sido implacável na crítica dos erros, hábitos e costumes de todos os segmentos sociais da Bahia, fiel recorte do Brasil colônia que ele queria ver superado, fato determinante para enfileiramento de inúmeros pessoas que se colocaram como seus inimigos, a verdade é que o “Boca do Inferno” apenas queria um melhor “céu” para sua amada terra.

9.A virulência e a verborragia notável de Gregório exerceu papel notável para mostrar o quanto a Bahia, como pedaço da colônia evidenciava o abandono negligente de uma prática imperialista miserável e dominadora exercida pelos governadores portugueses, legítimos suseranos medievais europeus que destribuíam privilégios a seus vassalos em troca de clientelismo e apoio político militar, potencializando pobreza, fome e prostituição entre as camadas menos favorecidas, chagas que cresciam (e, pior de tudo, ainda crescem) a olhos vistos, especialmente no nosso Brasil, alguns séculos depois, prova de que a libertação da história cobra um elevado (e demorado) preço.

10.O fato é que Gregório, mais do que um missivista bem intencionado, não quis ser um pensador brasileiro devidamente europeizado e tradicionalmente deslumbrado, muito menos um crítico alheio e distante da realidade do seu Brasil. Diferentemente disso, quis retornar da Europa para exercer sua “intelectualidade orgânica” (Gramsci) na sua Bahia, denunciando as agruras propiciadas pela colonização, traço determinante de que valioso lastro empírico pode derivar da sua valiosa e engajada produção.

11.Mais do que tudo, e certamente aí Gregório deixou grande lição, seu legado literário e histórico de vida é a prova de que é possível ser crítico e, acima de tudo, nacionalista. Quem faz a crítica do seu país e do seu território com os olhos e os pés fincados na sua realidade, em verdade, muito mais do que outros covardes que a estas se calam ou cedem por espírito de corpo, mais do que ninguém, quer ver essas condições superadas, ostentando propriedade nos enunciados que faz. Por mais áspera, dura e cortante que seja a linguagem, quando se critica aquilo que se ama, verdadeira autenticidade se tem.

12.Um anônimo. Acima de tudo Gregório de Matos teve o brilho e a lucidez de saber se fazer anônimo. Tanto assim que, justamente por conta disso, foi justamente a população menos favorecida da colônia quem assumiu grande importância na preservação e reprodução viva da obra do polêmico poeta, que livro algum chegou a publicar. Já que a imprensa da época (e hoje ainda não é muito diferente), já submetida estava aos interesses dominantes, não se encarregando de divulgar todo o protesto e indignação de Gregório contra os males históricos do Brasil, um dos quais a corrupção, coube à população disseminar seus textos, verdadeiros panfletos incendiários e cínicos, transmitindo-os oralmente, o que somente aumentava a irritação dos atingidos a quem o chapéu literalmente servia, potencializando a ideia de que o esclarecimento é o maior combustível para obtenção de consciência e cidadania.

13.Um educador. A forma como Gregório de Matos primou pela sua instrução para voltar os olhos ao problema do Brasil de seu tempo, a possibilidade transformadora que sua poesia assume ao ser reproduzida e disseminada anonimamente na classe popular desprovida de estudo, faz dele não só um nacionalista, mas sobretudo um educador popular-revolucionário, quem sabe um dos primeiros.

14.A ira destilada nos ocupantes de altos cargos da nossa colônia, antes de ser enquadrada superficialmente como prova de um sentimento destrutivo sobre a Bahia e o próprio Brasil, pecha que superficialmente alguns quiseram imprimir à obra de Gregório, tais aspectos simplesmente evidenciavam a lucidez, o profundo e justificado desgosto que o poeta tinha por presenciar e vivenciar esta condição.

15.O ódio e a raiva de Gregório, em verdade, precisam ser compreendidos e direcionados aos seus legítimos destinatários: todos aqueles que, ao seu ver, punham-se, com seus desvios, a enodoar a colônia e, via de consequência, o Brasil. E olha que estes alvos não eram (assim como ainda infelizmente não são) poucos, muito menos fracos, resquícios e sedimentos que ainda mostram sua visibilidade.

16.O poema “Já que me põem a tormento” bem exemplifica a personificação e o palco que a dominação estrangeira quis (e quer) fazer do Brasil ao torná-lo, como colônia, verdadeiro totem de favorecimento e celebração à corrupção, herança histórica que que ainda é objeto de certo culto tolerante por conta da compreensão da população, prova de que Gregório de Matos precisa ser resgatado e valorizado no ainda muito deficiente ensino público brasileiro, na mobilização política e social dos movimentos sociais.

17.Longe de enaltecer o Brasil com épicos e acríticos elogios e palavras de exaltação, como depois fizeram Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, Gregório de Matos preferiu centrar-se na ideia de que o melhor amor por uma terra (ou por uma instituição) se faz e se mostra com tenaz crítica praguejadora, a única que permite o curativo remédio de suas piores e mais graves enfermidades, verdadeira denúncia social e abertura de olhar e produção do saber voltada ao enfrentamento da realidade, como se espera de um “escrito de combate” (Nietzsche).

18.Notável compreender a obra de Gregório de Matos como revestida de uma importância cidadã formadora de cultura e consciência capaz de despertar a população do sono da acomodação, o maior pesadelo em tempo de democracia formal e ainda lamentavelmente simbólica. Olhar o retrospecto e a história da circulação poética de Gregório de Matos, na sua popularidade, é a prova de que o povo, contando que tenha onde se agarrar, por mais miserável e deficiente que seja sua instrução, pode se apropriar e adquirir maduras formas de sensibilização social e percepção dos abusos e exploração sofridos, pressuposto para que haja reação e insurgência contra aqueles que propiciam a perpetuação da dominação ideológica, certamente a maior e verdadeira prisão que tolhe qualquer povo da sua libertação.

19.Tal como Gregório fez com o Governador-Geral, Antônio de Souza Meneses, o “Braço-de-Prata”, no período em que este ocupou seu posto (1682-1684), denunciando seus arroubos tirânicos, seu exemplo estratégico precisa ser seguido e experimentado com toda a sorte dos governantes que, de alguma forma, servem-se do seu histórico não mais para praticar política do bem comum voltado à satisfação das necessidades coletivas, mas para reproduzir sórdidos e viciados interesses particulares. A propósito, dizia Gregório sobre Menezes: Xinga-te o negro, o branco te pragueja.E a ti nada te aleija. E por teu sensabor, e pouca graça. És fábula do lar, riso da praça. Té que a bala, que o braço te levara. Venha segunda vez levar-te a cara”.

20.Não por acaso é possível atribuir que a postura crítica de Gregório abriu espaço para surgimento de grupos dissidentes no Brasil da época, o mais importante deles liderado por Bernardo Vieira Ravasco, Secretário do Estado e Guerra do Brasil, movimento que tinha na pessoa de seu filho, o jovem Gonçalo Ravasco, e de seu irmão, o influente padre Antônio Vieira, outras figuras de destaque. Ponto alto e sinistro dessa histórica de insurreição, foi alcançado quando Francisco Teles de Menezes, Alcaíde-mor do Governador, acabou sendo assassinado, episódio violento que, segundo consta, teria sido articulado unilateralmente pelo impetuoso Gonçalo Ravasco, situação geradora da prisão de todos os membros ligados à facção dos Ravasco, inclusive Gregório de Matos, o que não impediu que a articulação da derrocada do Governador seguisse seu curso.

21.Mesmo depois da absolvição de Gregório de Matos e a facção dos Ravasco, o fato é que o Governador-Geral recebeu ordens expressas da Coroa para abandonar o cargo e retornar para Lisboa, o que fez com que o Marquês de Minas passa-se a ser a bola da vez e sátira do poeta, prova de que a luta contra a dominação imperial deveria continuar sem trégua, fosse quem fosse o governante de plantão.

22.Apenas em 1694, no mandato do governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, é que Gregório “Boca do Inferno” foi silenciado pelo êxito dos seus inimigos na obtenção do seu exílio para Angola, país onde contraiu a febre que o mataria anos depois. O mais paradoxal de tudo é que foi justamente auxiliando o governo local da Angola a modular e interagir com uma insurreição que Gregório obteve permissão para voltar ao Brasil, contanto que fosse para Pernambuco, onde, já com 58 anos, Gregorio não perdeu a mordacidade característica de toda sua vida e obra satírica, ainda que a doença e a distância da Bahia que tanto amava (e odiava) certamente tenha abreviado seu tempo e missão entre nós.

23.Brilhante como jurista, implacável como ajuizador e complexa figura humana, certo é que Gregório de Matos construiu, quem sabe, a melhor, mais crítica e revolucionária literatura brasileira no século XVII, herança que precisa ser resgatada e devidamente estudada, até mesmo porque os tempos atuais, no circo financeiro atual, teima-se em perpetuar no Brasil uma lógica colonial, desfile de governantes que precisariam de um enfrentamento literário qualificado e engajado, sobretudo se este tivesse a possibilidade de instrumentalizar promoção de cultura e consciência com capacidade de circulação e reprodução no espírito popular.

24.Gregório de Matos, baiano e brasileiro que utilizou seu nacionalismo para pensar e satirizar o Brasil do seu tempo, que ele queria muito diferente, o que ainda muitos de nós pretendemos, por mais que os meios e formas de luta estejam um tanto quando não identificados e dispersos, à procura de novos atores e enunciados.