domingo, 10 de junho de 2012

Por uma nova comunicação social no Brasil: revisitando o legado da Semana da Arte Moderna para repensar o papel da imprensa




"na música são ridículos, na poesia são malucos e na pintura são borradores de telas" Oscar Guanarabarino

"Precisa-se de um moço honesto que saiba fazer versos futuristas. Exige-se um atestado de ignorância" O Estado de São Paulo, 18 de fevereiro de 1922, p. 2.

A forma como a grande massa da elitista imprensa brasileira reagiu à Semana da Arte Moderna em 1922 é a prova de que a pauta crítica dos meios de comunicação muitas vezes não pode ser levada a sério. O livro "22  por 22: A Semana da Arte Moderna vista por seus contemporâneos" (Edusp, 2008), organizado por Maria Eugenia Boaventura, é uma ótima fonte nesse sentido.

Percorrer a obra mencionada é perceber o quanto o grupo liderado por Oswald de Andrade e Mário Andrade. também composto por Villa-Lobos, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, dentre outros, foi trucidado impiedosamente pela mídia raivosa daqueles tempos.

Entre o passadismo e o futurismo na arte e os caminhos para uma imprensa livre e democrática o caminho ainda é longo.  Se não temos mais o tempo da passagem de cem anos da independência politica do Brasil para que possamos discutir os meios de comunicação social, é fato que estamos a quase duzentos anos sem um projeto consistente de país, sem que os grandes temas nacionais mereçam debate consistente na cotidiana filosofia do jornalismo brasileiro.

Assim como na época da Semana da Arte Moderna coube à Graça Aranha emprestar sua mão forte de "padrinho" progressista aos modernistas, pergunta-se sem cessar quem poderia exercer esse papel nos dias atuais. Democratizar a informação, discutir os grandes temas de interesse nacional, será pedir muito?

Aos meios de comunicação no Brasil, de modo geral, ressalvadas as mesmas exceções, muitas desconhecidas do grande público, parece faltar personalidade e originalidade. Se isso são coisas da complexidade pós-modernista e o mundo todo está do mesmo jeito, fiquemos no recorte da realidade brasileira.

Os exemplos existem aos montes e difundem-se todos os dias. Anuncia-se incisiva e repetitivamente empréstimos para salvamento de bancos espanhóis e não há houve um contraponto sequer...Lê-se matéria no jornal falando sobre a judicialização de direitos na saúde e ela não traz um argumento ou marco teórico sequer, muito menos revela qual a sua ideia de uma saúde pública cuja integralidade todo governo aos poucos quer sequestrar. A morte de um jornalista maranhense que parecia seguir princípios de um  jornalismo de qualidade e interesse público merece pouco mais de que algumas horas de notícia, no espetáculo do crime em si, que sequer avança para cobrar a falta de prioridade e as deficiências de uma investigação aparentemente indigente.

Basta olhar a "grade" (prisional) da rede da televisão aberta no Brasil para perceber que os espaços predominantes estão cercados de culto à celebridade, de pobres programas de auditório...(surpreendentemente não falo das novelas, porque, bem ou mal, quando bem construídas, servem para enfrentar alguns preconceitos, conscientizar a população sobre alguns temas, trabalho feito de modo muito melhor e autêntico do que a maioria dos saudados seriados estadunidenses). No jornalismo aberto, predominam as notícias diárias e fugazes que rendem audiência e apenas isso. Não há  "campo" (Bordieu) para nenhuma outra reflexão mais aprofundada.

Se voltarmos o ouvido para o rádio brasileiro, de maneira geral, exceção feita a algumas emissoras de programação diferenciada, predominam programas de baixa qualidade, cercados pelas piores sonoridades. Os jornalões, por sua vez, ocupam-se dos temas do momento com a mesma e irritante superficialidade; a pauta de hoje é completamente esquecida nos dias seguintes e raras vezes merece algum encadeamento informativo.

Por essas e outras que precisamos pensar num novo marco para os meios de comunicação social no Brasil. É chegada a hora de um barulho parecido com as comemorações de 13 a 18 de fevereiro de 1922. Se ontem houve uma remodelação artística, já é hora dos  meios de comunicação no Brasil passarem por este tipo de processo. Precisamos de uma nova mentalidade, uma nova era no  jornalismo, com características que terão que ser construídas com métodos diferenciados.

Goste-se ou não, a liberdade de imprensa atual soa como verdadeira (e silenciosa) censura. A falta de informação sobre o rumo do país longe da catástrofre e das notícias de todos os dias é tão grande que, admito, hoje reconheço conveniência na perpetuação da tão questionada "Hora do Brasil".

Para cada Caros Amigos, existem muitas Vejas. Para um Juremir Machado, existem outras dúzias de colunistas reacionários e desinformados da pior espécie. Para cada Programa Faixa Livre existem toda a sorte de outras porcarias para se ligar pedindo música e mandando um abraço ao compadre, quando não para uma vil propaganda politica antecipada. E assim a banda toca...ao contrário do que diz a propaganda da Coca Cola, definitivamente, as boas coisas da mídia não  parecem ser maioria. O fantasma de Mário Pinto Serva, pretenso algoz da Semana da Arte Moderna, continua rondando mais do que nunca na mente de diversos seres-aí.

Se antes o Parnasianismo e suas regras era o grande adversário, quem sabe hoje o problema não esteja justamente na falta de regras, uma delas prevista na própria Constituição (artigos 221 a 224 tratam da comunicação social).  O que é fazer restrição à expressão e à informação (artigo 220 "caput")?  Obstaculizar espaços de emancipação crítica do povo brasileiro não é uma forma de censura política, ideológica e artística? (parágrafo segundo do artigo 220). E por que será que estamos cercados de publicidade sobre produtos, práticas e serviços nocivos à saúde e meio ambiente? (parágrafo terceiro do artigo 220).  Contrariamente ao que dita a Constituição, por que será que os meios de comunicação social continuam direta e indiretamente objeto de monopólio e oligopólio?  (parágrafo quinto do artigo 220).  Os princípios de finalidade educativa, artística, cultural e informativa, de promoção da cultura nacional e regional, de estimulo à produção independente, de regionalização da produção, de respeito aos valores éticos e sociais da pessoa (artigo 221 e incisos), onde estão? Daqui a pouco essas normas se vão sem que se sequer tenham um dia chegado à nossa realidade. Diante desse quadro, perguntar o que o Poder Executivo tem feito para renovar concessão, permissão e autorização de rádio e televisão de modo a observar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal (artigo 223) parece ser uma grande e irônica brincadeira. Ou alguém por acaso conhece um ato do Congresso Nacional que tenha deixado de renovar uma concessão ou permissão, quem sabe  uma decisão judicial (parágrafos terceiro e quarto do artigo 223). E o Conselho de Comunicação Social, existe e funciona de fato? (artigo 224).

Fossemos usar a "régua"de Guanarabarino, citada de pórtico, diríamos o quê da imprensa de hoje? Não me surpreenderia se ignorante e ingenuamente muitos utilizassem deturpadamente uma frase de Sérgio Buarque de Holanda para afirmar: "Somos bárbaros!...Avante".

Avante sim, sempre, mas necessariamente para outra direção. Parafraseando a imprensa lá de trás, cabeça cidadão também não é "bacia de barbeiro". Ontem, uma reforma da arte; hoje, à espera de uma evolução dos meios de comunicação. Que a "boa imprensa", dócil e gentil com os interesses dominantes, seja substituída por algo realmente novo, ainda que incerto.

Assim como a Semana trouxe múltiplas ideias de arte, que possamos ter múltiplas ideias para pensar a comunicação social no Brasil. Sem regulação não chegaremos a emancipação....Por mais que possam haver exageros, eles são naturais e, afinal, como bem disse Mário de Andrade "não se constrói um arranha-céu sobre um castelo moçárabe". Do mesmo mundo que se quis rotular os modernistas brasileiros como amestrados imitadores do "futurismo de Marinetti", que não cometamos o mesmo erro de se classificar como "inimigo da imprensa livre" quem apenas quer fortalecê-la com novos e necessários compromissos, com oxigênio de transformação social cobrada pelo Estado Democrático de Direito que escolhemos.

A tarefa é complexa e difícil, afinal, o ramo da comunicação social, da hoje louvada mídia, cada vez mais influente na vida em sociedade, tal com a arte, "é vastíssimo, é infinito" (Sérgio Buarque de Holanda). Ontem arte pela arte (Victor Cousin), hoje comunicação pela comunicação, desde que sobre novo paradigma.

Chega de repouso, já é chegada a hora de retratarmos o "movimento" e de buscarmos alguma agitação. Se antes Oswald de Andrade preocupava-se com o academicismo inglório da literatura e da arte, o  "caruncho" da grande mídia está aí para ser desafiado, de outro modo não será possível "educar o Brasil" para viver numa democracia de verdade. Aqui exigir-se-á uma certa rebelião, não com o passado da arte, mas com o passado que fez e faz com que nos contentemos com a democratização formal da comunicação social no Brasil. Ela já foi celebrada demais..ela por si só não nos basta...

O problema é que, talvez como a Semana da Arte Moderna de 1922,  é bem provável que faltem patrocínios para esta causa...Não se espere o espaço privilegiado das poltronas de um "Teatro Municipal" para começarmos trabalho. Que venham as sempre lembradas teses de Feuerbach debaixo do braço, não sem antes lembrar que a Gazeta Renana (e a imprensa) abriu mais espaços para o Marx do que a própria universidade. O mais triste de tudo será enxergarmos isso muitas décadas depois...a história teimosamente se repete.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

Lei Geral da Copa (para quê? para quem?)





1. O Projeto de Lei 2330/2011, materializado na publicação da Lei Geral da Copa ocorrido por intermédio da Lei 12.663/12, no último 5 de junho, constitui verdadeira expressão do Estado de Exceção (Agamben) de um país desviado de um projeto sério e consistente de nação.

2. Constatar a criação de crimes temporários até 31 de dezembro de 2014 não para proteger bens jurídicos relevantes, mas para atender a interesses políticos e ideológicos de ocasião uma entidade que, longe de ser uma marca de “alto renome” (como diz a Lei no artigo 3o),já se mostrou, por diversas vezes, noticiadamente corrupta, como a FIFA, nada mais é do que a prova de que, lamentavelmente, ainda somos colônia. Claro que essa legislação parcial tinha que reservar espaço para a “proteção industrial” de todos emblemas, mascotes e símbolos desta “maravilha” que é a FIFA como entidade.  Nesse contexto, dentre as pérolas do referido Diploma consta a reprodução ou imitação de qualquer símbolo da FIFA como uma “pirataria” qualificada com penas de até 01 ano (artigo 30), incluindo-se aí a exposição à venda desses produtos com pena de até três meses (artigo 31). O mais curioso é imaginar que, como prova da “seletividade” penal da Copa do Mundo como um mega-evento destrutivo de diversas funções republicanas, criaram-se dois tipos penais voltados à repressão do “marketing de emboscada por intrusão”, delitos que, pasme-se, sequer são de iniciativa privada, mas de ação pública condicionada à representação (artigo 34).

3. Se a FIFA é titular de todas as formas de expressão nos eventos (artigo 12), talvez até mesmo a liberdade de manifestação possa ser suprimida e, por conta disso,  alguém venha a ser preso, retirado do estágio ou quem sabe dar causa à indenização do Estado brasileiro se houver algum tipo de protesto (a coisa é tão feia e absurda que a Lei Geral da Copa chega a prever e ressalvar, no artigo 28, parágrafo primeiro, “o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana). Parece brincadeira...

4. Engraçado que, para FIFA,  nem mesmo  um ato de soberania como controle migratório pode ser exercido, daí porque “deverão ser concedidos, sem qualquer restrição (... ) vistos de entrada” (artigo 19). Mais do que isso, não todos os vistos e permissões tem que ser emitidos em caráter prioritário, sem custo e com requerimentos concentrados em único órgão (artigo 21). Quiça possa o cidadão brasileiro exigir o mesmo direito frente a todo e qualquer outro requerimento administrativo.

5. O quê dizer, então, de uma lei promulgada pelo Congresso Nacional com a sanção da Presidente da República na qual a União figura como, aí sim, “seguradora universal” de uma entidade privada? (artigos 22 e 23).

6. A malsinada legislação de excrescência é o “samba de uma nota só”. Tudo que favorece a FIFA é dever; alguns aspectos que poderiam interessar ao país na referida lei, como campanhas sociais de conscientização para um mundo sem armas, sem drogas, sem violência, para um trabalho decente, para divulgação de pontos turísticos brasileiros, isso é mera faculdade ou possibilidade.

7. Num país que ainda é recheado de miséria e pobreza, é revoltante perceber como o Executivo pode, numa tacada, com a conivência fiscalizatória do Poder Legislativo, não só garantir reserva de mercado e salvo-conduto para a prática de crimes econômicos e financeiros a uma entidade voltada a finalidade lucrativa exploratória em detrimento da liberdade de circulação e de exercício de atividade profissional dos trabalhadores do seu país. Para se ter uma ideia, há possibilidade de serem estabelecidas “áreas de exclusividade” e de restrição de circulação e atividades num raio de até 2km (isso mesmo, dois quilômetros!) ao redor dos ditos “locais oficiais de competição” (artigo 11). Para se ter uma ideia, precisou ser dito que o estabelecimento em regular funcionamento não terá suas atividades prejudicadas (mais um pouco e este teria que fechar portas ou estar associado compulsoriamente para dividir seus lucros com a FIFA).

8. Uma barbaridade dessas somente poderia terminar com benesses bem próprias da realidade clientelista brasileira, concedendo prêmios em dinheiro de cem mil reais a ex-jogadores brasileiros campeões mundiais (artigo 37) e auxílio especial mensal (artigo 42) até o máximo da Previdência Social para jogadores sem recursos ou com recursos limitados a serem pagos pelo Ministério do Esporte (o mesmo que deixa faltar quadras esportivas e espaços públicos de lazer esportivo nos quatro cantos do país), num país onde as pessoas ainda passam fome, onde falta moradia, onde faltam investimentos de política públicas de saúde e educação (não por acaso a grave de diversas universidades federais ocorre nesse momento).

9. O atendimento marginal e absolutamente limitado (simplesmente formal) de garantias de ingressos a preços diferenciados para idosos, estudantes ou pessoas em determinada situação de vulnerabilidade existe numa específica categoria e, ainda assim, quantitativamente limitado.

10. Se há um mínimo de mobilização e sensibilidade social interessado em manter uma ideia de pais, movimentos sociais e instituições da República brasileira, atenção, essa legislação da Copa é um verdadeiro acinte, um escárnio à dignidade política do povo brasileiro.

11. Serão 12 (doze) cidades utilizadas como sede da Copa para um investimento projetado em torno de, no mínimo, 15 bilhões, conta que inclui apenas  reforma do Maracanã, que há havia recém reformado para o pretérito "Pan", por mais de um bilhão, isso num país com deficiente sistema de transportes no qual o trânsito faz vitimas fatais todos os dias...é de envergonhar. Mas se até o calendário do sistema de ensino deve se ajustar ao interesse da FIFA para que este coincida com todo o período dos jogos (autonomia pedagógica, para quê!), na forma do artigo 64, por aí já se mede o estrago (se o foco ficar na licitude das licitações e obras públicas realizadas então...).

12. Os direitos humanos e fundamentais nessa Lei Geral como expressão do Estado de Exceção, como bem já tem sido dito pelos corajosos e engajados Comitês Populares da Copa (http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br/), estão mesmo “de escanteio”. Nas palavras do Comitê em pronunciamento recente: a Lei Geral é o carro-chefe de uma plataforma de ameaças a direitos e garantias arduamente conquistados pelo povo brasileiro, tais como os direitos do consumidor, o direito ao trabalho e o direito de ir e vir (…)ofende também as liberdades de imprensa, de informação e de expressão e fere o patrimônio público e cultural do país. Como amplamente denunciado, o projeto chega a prever a criação de novos crimes, apenas para garantir monopólio de mercados à FIFA e seus parceiros comerciais”.

13. Há de se fazer algo, travar algum tipo de luta, se não for possível no plano das instituições (pelo que foi demonstrado até aqui), que seja no plano ideológico, ainda que na perspectiva do “repúdio” puro e simples. Se não for assim, como já propôs um "alto" dirigente da FIFA,  talvez mereçamos mesmo “um chute no traseiro” como nação soberana democrática, se não for algo bem pior do que isso...

domingo, 22 de abril de 2012

"A Questão da USP" na reflexão de Florestan Fernandes: uma leitura contemporânea



“Lembrei aos colegas o que se sucedera com o advento do nazismo na Alemanha. Não podíamos ‘lavar as mãos’. Era preciso denunciar seja o sentido da evolução política da ditadura, seja a maquinação contra a universidade e a sua função crítica” Florestan Fernandes

1. Uma descoberta válida para se refletir sobre a passagem de mais um aniversário de nossa sombria e abominável Ditadura Militar e, ao mesmo tempo, atualizar a problematização do que se espera da universidade brasileira, está na obra “A questão da USP”, do extraordinário sociólogo Florestan Fernandes.

2. Não se trata aqui de falar dos episódios recentes e polêmicos que envolveram a Universidade de São Paulo tratados de forma um tanto quanto deturpada pelos meios de comunicação de massa. O foco é outro, embora o produto também sirva para desnudar uma melhor e mais crítica perspectiva  sobre os referidos cenários, especialmente quando vige uma governança bandeirante um tanto quanto afeita a “choques” de ordem em detrimento da cidadania (e aqui poderíamos citar dois episódios de barbárie em 2012:  “cracolândia” e Pinheirinhos).

3. O livro, que começa analisando a Universidade de São Paulo no duelo entre mito e realidade, tem a importância de descrever o processo de construção histórica da instituição desde o surgimento na década de 30 até a formação dos seu primeiro cinqüentenário quando da publicação da obra, ocorrida em 1984, já vinte anos depois da eclosão nefasta do regime militar, situação que resultou na “antiuniversidade” como instrumento de normalização e dominação, vícios ainda presentes de algum modo aqui e acolá tamanho o trauma propiciado.

4. Muitas lições podem ser extraídas da obra de Florestan Fernandes, não apenas a constatação do quanto as pessoas e as instituições podem sucumbir pelo corporativismo, pânico e pelo discurso individualista do medo, quando não pela covardia. Florestan deixa muito clara a compreensão de que a inércia e a crise dos intelectuais orgânicos vinculados à uma instituição-chave como é a universidade para o desenvolvimento do país pode ser absurdamente nociva e prejudicial a construção do futuro. Como um desses exemplos, cita o fato de Faculdade de Medicina da USP ter exigido a retirada daqueles que se insurgiam contra o regime para “preservação” do interesse coletivo, o que faz Florestan em certo ponto afirmar que “os inimigos não se encontram mais entre os adversários, mas nas próprias hostes dos companheiros”.

5. A obra deixa muito clara, na sua fundamentação, a importância da universidade brasileira trilhar caminho próprio e autêntico de modo a romper com o modelo europeu eurocentrista de colonização do saber para se preocupar com os seus próprios problemas, com aquilo que a realidade nacional coloca na rua, numa verdadeira “epistemologia do sul” (Boaventura).

6. Se é bem verdade que hoje não temos mais Professores recitando cursos inteiros em francês ou latim, devido ao contexto de mercantilização do ensino, do subfinanciamento das universidades públicas, bem como da falta de processos seletivos adequados para captura dos verdadeiramente vocacionados sob o ponto de vista ideológico para cumprimento da função vital que se espera de um Professor, entre outros problemas, certo é que muitas instituições e profissionais estão longe de representar a referência que se espera que uma universidade represente do ponto de vista substancial e formativo para o crescimento do país.

7. Mais do que isso, a história narrada por Florestan deixa evidente a importância dos intelectuais não subestimarem a força de resistência que possuem, nem mesmo ignorarem o potencial que dispõem para embalo e promoção de melhores e maiores transformações na sociedade. No episódio narrado, se é bem verdade que faltou força (e coragem) à muitos que estavam “dentro dos muros” da universidade para enfrentamento mais ostensivo e incisivo da ditadura (e nesse contexto, muitos foram “ursos amestrados” a “dançar de um lado para o outro” – como diz Florestan), não se pode negar o fato de que muito do período mais duro foi protelado com posturas de critica e de enfrentamento, sendo que um dos representantes mais legítimos desse grupo foi o próprio Florestan Fernandes.

8. Numa das partes mais ricas do livro, denominada “A Ilusão da História”, Florestan resolve dar de modo mais direto seu testemunho, certo de que há um “dever de enfrentar essa recapturação da memória”, afinal, a Ditadura Militar (que se denominava cinicamente “Revolução” a pretexto de mobilizar “forças vivas da sociedade”),  é  uma verdade que "não pode ficar nas mãos dos que praticaram a repressão e deram o golpe”, justamente por entender Florestan que uma universidade não vive só de glórias e, ao contrário, (e com o homem por vezes não é diferente), também “precisa de experiências amargas, de sofrimento, de perseguições para enrijar e florescer”.

9. Neste capítulo do livro duas histórias chamam atenção. Nelas Florestan demonstra a importância da coragem intelectual de dizer e defender o que se pensa em nome do interesse coletivo.

10. A primeira se deu quando Florestan, convidado e buscado pessoalmente pelo oficial Marechal Castelo Branco, em 1962,  para uma fala em curso dirigido aos oficiais do Estado Maior do Segundo Exército, defendeu que ou o ensino fechado militar deveria sofrer uma revolução ou deveriam os militares freqüentar as escolas de ensino superior para calibração de talentos para que pudessem desempenhar papéis em todos os setores institucionais da sociedade, núcleo da exposição. Segundo o próprio Florestan, que um colega de mesa presente na ocasião indagou se estava louco, “depois disso, nunca me convidaram para mais nada“. 

11. A segunda história se dá na descrição dos recursos de intimação utilizados pelos militares em plena Ditadura, que incluíam diversos expedientes. Um deles era a promoção de  buscas policiais de pessoas de modo ostensivo em locais onde se sabiam essas não estar, não por uma finalidade justa, mas simplesmente para gerar pânico. Outras estratégias iam da formação de listas dos famigerados inquéritos policiais militar passando pela  operacionalização do serviço de espionagem até a prisão pura e simples. Como diz Fernandes, “no fundo, o ‘pânico circular’ era o grande objetivo”. Foi assim que, quando surgiu a “lista de expurgo”,  listado para comparecer à inquirição, limitou-se a apresentar uma carta de protesto (que segundo Florestan a ele era  um “protesto anódino que estava longe de conter o que devia ser dito), situação que não só rendeu sublinhados em vermelho de parte do oficial que lhe interrogou, como também a resistência de Florestan até as últimas conseqüências em manter a sua postura, mesmo sem nenhum apoio institucional, o que custou sua prisão, que somente se estendeu por três dias por conta da mobilização de estudantes e do estrépito gerado pela sua custodia. Nas palavras dele, depois de uma “conversa amarga” com o Diretor da Faculdade, que pedia que este reconsiderasse sua posição e retirasse o protesto, pois estaria pensando só nele e não na instituição, na família, respondeu Florestan:  “Retruquei que não me cabia dar mau exemplo a assistentes e auxiliares. (...) Os meus filhos, a minha esposa e a minha mãe vão ficar orgulhosos de mim, aconteça o que acontecer, e eles já estão prevenidos. (...) Sou obrigado a fazer o que faço porque a Faculdade se omitiu. Cabia à Faculdade repelir a afronta desse inquérito policial-militar, não a mim”. Florestan entende que a pior das tragédias seria a universidade ter que “comer no cocho da ditadura”, o que para ele não podia ser feito, nem que isso custasse a liberdade.

12. Na obra, entre tantos ensinamentos,  Florestan Fernandes demonstra como a Reforma Universitária e a luta por mais espaço democrático e mobilização popular passou a ser uma ameaça aos militares, o que exigiu que tivessem feito o que fizeram.

13. Em tempo de resgate da primavera dos povos, de manifestações, de mobilizações, de indignados e movimentos de ocupação nas praças e cidades, de se questionar quem é que representam quem ou o quê,  é de se esperar que as instituições de ensino superior, não só públicas, mas também privadas, cumpram com o seu papel social e cultural que delas se espera. Aqui reside a grande vitalidade e atualidade do texto de Florestan Fernandes.

14. A propósito, desde há muito que a universidade não pode(ria) ser uma "instituição de ponta" feita “das elites para as próprias elites”. Contudo,  contraditoriamente a isso, num enredo em que o financiamento da extensão e a inserção social das universidades ainda é extremamente deficiente, não obstante existam pontuais e excepcionais bons exemplos, de modo geral as políticas de ação afirmativa ainda não são uma realidade obrigatória e consolidada em todo o território nacional, prova de uma autonomia universitária que ainda é utilizada às avessas.

15. Refletir sobre até que ponto o impacto sentido pelas instituições do ensino a partir da experiência da  regime militar serviu de experiência e lição para explicitar o complexo e desafiador papel moral, social, político, cultural e educacional a ser desempenhado  pelo conjunto da universidade brasileira é uma questão que precisa ser recolocada, inclusive no que diz respeito às questões e os reflexos históricos e jurídicos decorrentes desse período. 

16. Como diz Florestan na introdução de seu livro, num primeiro plano, espera-se que não só a USP, mas qualquer outra universidade, especialmente se for pública, saiba manter uma relação inconformista firme, ardente (e ao nosso ver permanente) com a “instauração de uma ordem social verdadeiramente democrática”. Isso implica, muito mais do que lembrar e trazer à memória o tempo triste da Ditadura Militar, na mobilização para que as questões relacionadas ao interesse coletivo, tais como a absurda anistia, até aqui vigente e chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, possam ser revistas e discutidas com a profundidade e os atributos de espírito (e revolução) necessários. 

17. Em tempos de quatro anos da crise do capitalismo no mundo, de um bilhão de pessoas passando fome, de escoamento de recursos públicos com a corrupção e com obras públicas realizadas em regime de exceção para megaeventos da "Copa do Mundo" e "Olimpíadas", fico pensando o que Florestan Fernandes diria da aparente falta de mobilização nacional mais concatenada e efetiva da comunidade universitário-acadêmica docente e discente quanto a esse e outros aspectos que ainda perturbam a realidade nacional. No “busílis” da questão, expressão tão cara à Florestan, parece estar, ainda, certa anestesia social quanto a compreensão desses problemas, bem como certa incapacidade de percepção e de reação de todos por mudanças, por mais que essas possa estar sendo cada vez mais praticada por iniciativas emancipatórias de uma contra-globalização (Boaventura) praticadas aqui e acolá num mundo ainda em transe (que também nos faz sentir saudade do cinema de Glauber).

18. Encerrando com esperança, que precisa habitar e residir muitos lugares "não comuns", especialmente  o campo da universidade, que fique patente que o período de trevas serviu mesmo “para limpar o horizonte intelectual” da comunidade acadêmica e, via de conseqüência,  “desvendar uma consciência mais realista, crítica, responsável, exigente e democrática do que deverá ser a universidade em um país pobre e atrasado como o Brasil”.  A “Questão da USP” foi escrito em 1984, mas de lá para cá nada mudou. Como bem adverte o corajoso e singular Florestan, “fatos são fatos”.

domingo, 25 de março de 2012

Notas sobre Direito & Música



“A tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem” Theodor Adorno

O Direito é um produto cultural, enunciação praticamente livre de maior controvérsia ou dissenso.

O papel da cultura em tempos pós-modernos, sabemos, está muito longe de ser uma possibilidade de emancipação, pairando a dominação pelo discurso do capital, do consumo e da alienação. O ponto toca a desagregadora “indústria cultural” já referida por Adorno, a necessidade de discutirmos uma nova ideia de cultura, como, por exemplo, propõe Terry Eagleton.

Ocorre que este hermético e muitas vezes incompreendido e hermético universo do direito, ao pretender lidar e disciplinar com os maiores bens da vida e dos seres humanos, também depende de amor e sensibilidade na criação e aplicação de suas normas jurídicas (e sociais, não esqueçamos). Esta uma das tantas inesquecíveis lições de Warat e de outros tantos juristas preocupados com um ensino e uma transmissão responsável do Direito, do seu reconhecimento identitário como instrumento de transformação da perversa realidade social, ainda distante muita poeira e léguas dos pretensiosos objetivos da República (artigo 3o, Constituição)

De outro lado, a música é uma expressão da arte com suas métricas, intervalos, acordes e tons, enfim, com sua epistemologia própria, campo da criatividade que, da mesma forma que preza a disciplina do ensaio, sabe o valor (e o sabor) do tempero de uma improvisação (como no jazz).

Não é preciso muita reflexão para perceber que o direito de hoje (em crise desde há muito, como quase todas as instituições da transmodernidade) precisa desesperadamente da arte e de todas as expressões culturais como remédios vitais capazes de lhe emprestar um novo, autêntico e criativo sentido.

O Direito, para além dos mecanismos tradicionais de sua circulação, também depende da música como instrumento de estímulo à sua vocalização e compreensão mais democrática e popular.

O Direito "achado na rua", defendido por Boaventura de Sousa Santos, com música, pode ficar mais fácil de ser localizado e aproveitado.

Definitivamente já passou da hora de se pensar na música como canal para ensino, debate crítico e verdadeira popularização do direito, aspecto último que integra a elogiável pretensão do “Estado de Direito”, importante veículo que, organizado pela engajada Carmela Grune, possui e divulga importante e original projeto contrahegemônico chamado “Direito no Pé e Samba na Cabeça”(basta acessar youtube e conferir). Já que o direito é cultura, e cultura é samba, nada melhor do que um produto da expressão popular para fazer o juridiquês entrar no ritmo da rua, da favela, da batucada. Uma roda de samba pode ser o começo de e nova sonoridade e alteridade jurídica. Por que não?

Se Direito positivamente precisa predominar “kantianamente” como elemento de razão, basta acrescentar uma pitada de música para que seus tecido ganhe um pouco mais de textura, cor, ritmo, contraste e sensibilidade. Ou o Direito faz questão de não se fazer ouvir?

Não por acaso alguns diferenciados artigos ou mesmo textos jurídicos abrem com alguma citação ou transcrição musical. Perceba-se que a música comporta “fala” com transcendência, mutabilidade e circularidade foucaultiana, “caixa de ferramentas” reveladora daquilo que não propriamente não se revela pela letra fria e disciplinada da escritura.

Lembro aqui do sempre genial Alexandre Morais da Rosa citando Nei Lisboa no clássico e imperdível Decisão penal: bricolage de significantes e significados: “não ando do lado da lei, a lei não foi ideia minha…". E poderia continuar: lamento que o mundo não gire, na velocidade que eu queria.

Tal como a literatura traz a narrativa e a vida para iluminar e encorpar o Direito (e o excelente programa Direito e Literatura da TV Justiça comandando pelo singular Lênio Streck é a prova cabal do poder deste casamento), a música, tal qual outro estado das artes (teatro, cinema, dança) também pode ser um decisivo instrumento, um verdadeiro "pé de cabra" para forçar o Direito a sair do seu labiríntico e inacessível Castelo kafkiano para aproximar-se à rotina das pessoas que dele dependem, cotidiano do qual cada um extrai sua filosofia, como bem ensina Agnes Heller;

A música, portanto, pode ser veículo de crítica, transporte e aproximação do Direito com a realidade, pois mais do que nunca há de se querer um direito vivo, pulsante e verdadeiramente plural (Wolkmer).

Afinal, nessa proposta de união entre direito e música, se queremos um direito realmente latino-americano e descolonial, de "libertação" (Dussel), como acertadamente é a proposta de muitos, que façamos opção por um estilo propriamente cultural e afeto à nossa realidade tupiniquim, não havendo melhor e mais genuíno retrato comunitário dessa expressão do que, por exemplo, o samba, que se fizer a sala de aula formar uma "roda", por exemplo, já estará contribuindo para renovar o desgastado formato do ensino jurídico.

Lembro do grande e saudoso Mestre Warat dizendo que para os lidadores do direito bom seria exigir alguma demonstração explícita artística (mais de vontade do que de talento) como prova de proficiência para demonstrar cota mínima e necessária de sensibilidade exigível no trato rotineiro de valores e vidas humanas. Segundo ele, dançar (ou interpretar) uma música, recitar um poema, tocar um instrumento, apreciar elementos críticos no cinema, alguma dessas empreitadas obrigatoriamente teriam que ser experimentadas e praticadas pelo jurista, sob pena de se ter este como desabilitado para seguir adiante no seu ofício...

A música pode trazer novas práticas de inclusão ao velho mundo do direito, o qual por não poucas vezes teima se constituir em espaço de exclusão pela palavra. Por isso também passa a oxigenação e depuração democrática da linguagem elitista (burlesca e burguesa) do direito. Diz-se isso porque falar sobre música também é tocar no baú da linguagem como instrumento de instrumentalização (e compreensão) do proprio Direito.

Como bem lembrou recentemente o arejado Professor Vladimir Passos de Freitas, “Direito e música é tema rico e pouco explorado”. Como ele bem registra, quem lembra das músicas brasileiras que balançaram os porões da Ditadura? Como desconhecer o valor de “Saudosa Maloca” do Adoniran Barbosa para discutir posse, propriedade e o prório direito fundamental à moradia? Como ignorar a sabedoria de um Bezerra da Silva para retratar cenas do cotidiano policial e a seletiva criminalidade de periferia? Que dizer então das sábias reflexões e baladas de um ícone como Raul Seixas?

Existem outros inúmeros bons exemplos. Entre outras iniciativas, merece destaque um projeto desenvolvido em parceria pelos cursos de Música e Direito da Universidade Federal do Sergipe, envolvendo trabalho dos Professores Christian Alessandro Lisboa e Carla Eugenia Caldas Barros (ver http://direitonamusicaufs.blogspot.com.br/). De outro lado, no Rio Grande do Sul, os Professores Salo de Carvalho, Felipe Moreira de Oliveira e Moysés Pinto Neto já perceberam a potencialidade da música para ilustrar debates jurídico-penais, como pode ser conferido no blog “Criminologia de Garagem” (http://criminologiadegaragem.blogspot.com.br/). Ou alguém tem dúvida de que, inspirado no rock, não fica mais contextualizado lembrar o quanto a dogmática penal (e outros ramos do direito) precisa de irreverência, rebeldia e contestação?

Em linhas finais, não se olvide que a Música, como o Direito, depende da pré-compreensão, travessia que tem na hermenêutica e interpretação aspectos decisivos à obtenção do valor justiça. É nesse caminho aliás que devemos abordar de modo diferenciado a questão dos direitos autorais, campo onde barbáries jurídicas e verdadeiros estados de exceção "agambenianos" (ex: SOPA, PIPA e outros) estão sendo praticados (mas precisa ser tema de outro “post”).

Música, como lei, não se executa mecânica e assepticamente, ao contrário, se interpreta!

Se a vida sem música seria um erro, se a música também está aí no mundo para aliviar o sofrimento do ser, como lembra Nietzsche, e se o direito, de outro lado, precisa pautar-se pelo paradigma filosófico da vida concreta (Celso Ludwig), bem se percebe que combinar direito e música é um arranjo contemporâneo mais do que urgente e necessário.

Aos que não querem o Direito como “ouro de tolo”, como figurativamente ensina Raul Seixas, aos que não desejam ver o Direito “sentado num trono de um apartamento com a boca cheia de dentes [e normas] esperando a morte chegar”, “longe das cercas [jurídicas] embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê” que sabe não há de se assentar “a sombra sonora” de algum “disco voador”.

São as “aguas de março deixando o verão” e talvez trazendo um pouco mais de esperança e “promessa de vida” no coração…do Direito.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Pinheirinho...um caso para (não) esquecer!



“Se o senhor não tá lembrado, dá licença de contá...(...) que aqui onde agora está...(...) mais um dia nóis nem pode se alembrá, veio os homi com as ferramenta e o dono mandô derruba (...) que tristeza nóis sentia, cada tauba que caia”

Adoniran Barbosa

É difícil de acreditar que o corporativismo e uma disputa mesquinha de competência federativa entre Justiça Estadual e Federal, entre outros fatores irracionais impensáveis (ou simplesmente ainda não descobertos), tenham inspirado o Tribunal de Justiça de São Paulo a cumprir tão mal e perversamente sua “missão cívica de “distribuir justiça” como ocorreu há menos de uma semana.

“Pinheirinho” representa tudo, menos o diminutivo do seu próprio nome. Simboliza a expressão de um Estado (e de um povo) sem Justiça.

Um canetaço vindo (e “sob comando, risco e responsabilidade”) da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo em meio a uma “consulta” (e outras coisas mais) e uma postura lamentável do Juízo de origem serviu para envergonhar um Poder Judiciário já um tanto pressionado e acossado como instituição nos últimos dias.

A pretexto de uma “reintegração de posse”, no ritmo de balas de borracha, bombas, gás e muita violência (que não poupou mulheres e crianças), moradias e sonhos foram destruídos em meio a uma parafernália de máquinas e de uso desproporcional de uma força policial que pode ser tudo, menos comunitária. USP e “cracolândia” que o digam...

Vai ver é a “celeridade” (rapidez seletiva), a “modernidade” (no que tiver de mais liquido e pior) e “acessibilidade” (só se for aos interesses patrimoniais capitalistas), valores e características que constam no “planejamento estratégico” da Corte Paulista. Nem a mais terrível “improvisação” poderia ser tão nefasta à essa ação arquitetonicamente “planejada”. Muitos e incalculáveis são os seus resíduos e entulhos.

A comunidade estava ocupando apenas parte de um gigantesco terreno, simplesmente vivendo e, segundo consta, inclusive respeitando o meio ambiente. Prova da vida e atmosfera comunitária existente é que até biblioteca havia no local...Mas isso, claro, não interessa ao mundo dos negócios e da mega especulação imobiliária. Há muito mais em jogo...siga la pelota, como diria um conhecido narrador de futebol.

Decisão da justiça não se discute, se cumpre? Na, na, na (ji) na(ja), nada disso Senhor Governador, pelo menos não nesse caso. A “jogada” parece ter sido mais do que ensaiada. A curiosa e constrangedora declaração dada “tendo em vista o noticiário sobre o episódio do Pinheirinho”, dizendo que o “Executivo do Estado, como era dever constitucional seu, limitou-se à cessão do efetivo requisitado pelo Tribunal de Justiça” fala por si só.

Para definir o que houve não há outra palavra a não ser barbárie. Barbárie praticada, veja só, justamente por uma das instituições que deveria resguardar o Estado Democrático de Direito. Isso tudo quando as notícias dão conta de um acordo que teria sido entabulado envolvendo os “proprietários” interessados e representantes governamentais.

Até agora não consigo entender a postura esdrúxula do Tribunal Paulista no episódio Pinheirinho, em São José dos Campos-SP, capaz lembrar das atrocidades históricas dos piores e mais violentos bandeirantes. Um dano moral coletivo à imagem do Poder Judiciário como esse é de proporções difíceis de calcular.

E olha que no já referido “mapa estratégico”, no planejamento do Judiciário paulista, a missão é “ser reconhecido como instrumento efetivo de justiça, equidade ou paz social”... até parece brincadeira.

Um Judiciário que nega e ignora solenemente direito fundamental e constitucional de moradia para atender a interesse de especulação imobiliária ou mesmo que seja para “reafirmar sua autonomia” merece o desprezo e a repulsa firme da sociedade, quando não dos meios de comunicação social (que só para variar informam muito pouco sobre o histórico do caso), por mais desarticulada que essas instâncias ainda estejam.

É impressionante como, por vezes, o Judiciário resolver ser protagonista exatamente naquilo que não lhe cabe. É o verdadeiro “ativismo” às avessas. A propósito, gostaria de saber quantas decisões a Corte Paulista já emitiu para serem cumpridas de surpresa em pleno repouso dominical, seguida de heterodoxa declaração oficial de “isenção de responsabilidade” dos órgãos de segurança pública do Estado.

Se um Secretário de Articulação Nacional representante do Governo Federal chegou a sentir na pele a violência, imaginem as violações que não foram praticadas com as famílias que se encontravam no local resistindo em legítima “desobediência civil”.

A forma patológica como algumas situações se repetem no higienismo paulista precisa ser estudada em laboratório. Vai que este mal tem cura..

Não esqueçamos da co-responsabilidade que o Superior Tribunal de Justiça assumiu neste caso. Tratou um conflito de competência simplesmente ignorando o que havia no fundo, descumprindo papel conciliatório e integrador que se espera de um Tribunal que se diz da “cidadania”.

E o sempre barulhento e costumeiramente midiático Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não fará nada? Será que para este tipo de postura alienada poderá ensejar o surgimento extravagante de uma nova “meta”? Olha que a competência originária do CNJ foi mantida pelo Supremo Tribunal Federal na data de hoje. Como bem diz o magistrado Gerivaldo Alves Neiva, ah se fosse um juiz singular o responsável por esta grotesca violação de direitos humanos...certamente a essas horas já estaria sendo preparado e exportado para os trinta graus negativos da Sibéria, quem sabe ganhando uma “aposentadoria compulsória”...

Em tempo, estou tentando descobrir, também, qual foi a medida adotada pelo Ministério Público paulista no episódio (se alguém souber, me avise).

Por enquanto, a esperança tem abrigo, mais uma vez, no papel das Cortes e Organizações Internacionais, as mesmas que repudiaram Belo Monte, Anistia aos torturadores da Ditadura e muito mais, sem que isso não tenha provocado mudança alguma...prova de um país ainda torto e sem projeto, exemplo de uma nação que por vezes (muitas vezes) não sabe o que faz em nome dos seus poderes de Estado e da sua soberania. Prova de uma internacionalização que somente serve ao mercado...