
Com a mesma "luz, câmera e ação" que o cínico cinema de Holywood costumeiramente narra determinados e "selecionados" fatos, não raras vezes deturpando ou iludindo seu real e mais tranformador sentido, forçoso reconhecer, de outro lado, que esses mesmos ângulos predeterminados e ensaiados no rasteiro interesse da "Academia" são ainda mais danosos (e alienantes) quando projetam zonas sombrias de crepúsculo, omissão e implacável esquecimento sobre episódios históricos, políticos e sociais traumáticos e empiricamente transformadores que, se bem desenvolvidos, trabalhados e compreendidos, certamente poderiam se constituir em importantes "flores" civilizatórias capazes de colorir cidadania, desabrochar indignação e fazer crescer o pensamento crítico de todo um povo que, além de espectador, precisa ser o autor de seus anseios e reinvindicações.
Felizes daqueles que, como HOWARD ZINN, lembram a existência de "historias que Holywood nunca cuenta", pois a percepção do problema certamente é o primeiro passo emancipatório para que a "logica do negativo" se opere, invertendo a relação de luz e sombra no campo da visibilidade e percepção do sentido.
Em tempo de Carnaval no Brasil a constatação não parece ser diferente.
Continua sendo o Carnaval brasileiro um evento tradicional, de interesse e apelo popular, com apoio e transmissão da grande mídia, que, todavia, nada serve como reflexão, como mobilização, como enfrentamento das mazelas (e das misérias) nacionais.
Basta abrir o jornal, ligar o rádio ou a TV, quando não acessar os "portais" mais "prestigiados" para perceber que tudo o que se consegue é produzir mais futilidade, mais trivialidade do mesmo vazio...
Entre um recado ou outro de uma "celebridade" nas sempre estúpidas entrevistas de camarote, entre a investigação "científica" sobre a estrutura de um "trio elétrico" e o retrospecto detalhado de como foi mais um dia de corpos e "relacionamentos" desfilando nas praias, quem sabe sobre algum tempo para encontrar "o verdadeiro enredo do samba", que, como ritmo, música e expressão cultural que é, não pode (ria) ser esvaziado de seu potencial de transformação e despertar de sensibilidade para, assim, continuar permitindo o genuíno "mascaramento" dos verdadeiros problemas nacionais (que, como "as escolas", continuam se "concentrando" e desfilando em sociedade, com a diferença de que ao invés de trajeto retilíneo continuam perdidos em movimento circular em busca de um ponto efetivo de escape e necessária "dispersão").
Neste estado delirante das coisas que somente pode conduzir a um ponto de vista delirante (BAUDRILLARD), que bom seria se alguns de apoiadores e "personagens" do nosso "festejo nacional" pudessem refundar o movimento "cansei", não pelos patéticos motivos e conteúdos deflagrados ano passado como manobra desastrada de uma elite estúpida aterrorizada e inconformada pela "insegurança" e "violência" de um sistema que ela mesma reproduz e cotidianamente alimenta, mas sim agora tendo como foco a forma absolutamente patológica que reproduz o atual Carnaval do Brasil travestido de um pseudo produto cultural.
Entre fantasias, cores, festival de corpos, espaços e divisões classistas para assistir o "desfile", obviamente não será a "liga independente das escolas" (que para alguns nada mais é do que a cartelização da lavagem de dinheiro do 'crime organizado' paradoxalmente patrocinada com recursos públicos oficiais) que irá transformar o Carnaval brasileiro em verdadeiro e útil instrumento cultural se o povo continuar tolerando e deixando "a banda passar", mesmo quando poderia aproveitar o ritmo incessante da "bateria" para discutir um novo pacto social capaz de trazer luz sobre as raízes dos seus problemas, das razões e múltiplas causas concorrentes que continuam impedindo o Brasil de ocupar espaço de verdadeira e material democracia numa "geografia de espaço" (MILTON SANTOS) mais solidária e humanitária.
Enquanto reproduzirmos a "marcha" alienante do horizonte atual (e não as boas reivindicações, como já dizia PAULO FREIRE), o produto do Carnaval e dos seus pelo menos 04 (quatro) dias de lazer, paralisação e festejo não irá além de incrementar o "turismo" e fomentar simulacro de uma suposta "cultura" que nada transforma ou impacta o tecido social.
A avenida pode estar cheia, os holofotes podem estar acesos, a arquibancada pode estar animada, a imprensa a postos e mobilizada, mas este continua sendo mais um Carnaval do qual se parte do nada para se chegar a lugar algum...
O que poderia ser um momento importante de ativismo e engajamento na discussão dos diversificados problemas do nosso desvairado projeto de sociedade acaba sendo esvaziado no cronômetro cínico do tempo pendular patrocinado pelo sistema totalitário neoliberal entre a chegada de "uma ou outra escola", principalmente para um povo que, muito além (e para "más allá") de "pão e circo" e lazer, precisa mesmo rever e brigar por melhores políticas de saúde, habitação, saneamento e educação...
Numa sociedade que ainda sonha desbragadamente em ser livre, justa e solidária, embalada no imaginário e no simbólico de uma Constituição que já tem mais de vinte anos reais, ainda há de chegar o dia em que iremos assistir e presenciar o enfrentamento de nossos reais enredos (e fantasmas) com a mesma mobilização e energia que os melhores "blocos" orgulhosamente vão à rua entoar seus cânticos, mostrar seus estandartes e empunhar suas bandeiras...
Até que algo efetivamente mude (o que se espera seja breve), a verdadeira "cultura" do Carnaval seguirá cumprindo papel tão diminuído, nocivo e alienante como a estúpida idéia da "pátria de chuteiras" nos tempos de regime militar...
Por enquanto, lá vem mais uma quarta-feira de cinzas e ressaca pela cultura e oportunidades perdidas...